Revolução verde e sem agrotóxico

No dia 13 de agosto, a Global Footprint Network (GFN), organização internacional pela sustentabilidade, divulgou um dado alarmante: em menos de oito meses, a humanidade consumiu todos os recursos naturais disponíveis no planeta para o ano todo. Nesse dia, entramos no que a organização chama de Sobrecarga da Terra (em inglês, Overshoot Day).

Fazenda urbana Oranjezicht City Farm (OZCF), na Cidade do Cabo, África do Sul: com o aumento da Pegada Ecológica e da população urbana, o cultivo agrícola nas cidades surge como uma alternativa para suprir a demanda por alimentos. Crédito: divulgação

Há 15 anos, a Global Footprint calcula a relação entre o impacto da humanidade sobre o planeta (Pegada Ecológica) e a capacidade da natureza de renovar os recursos naturais e absorver os resíduos (biocapacidade), incluindo o CO2. O dia de Sobrecarga da Terra marca, portanto, a data em que o consumo de recursos naturais ultrapassa o que o planeta pode regenerar naquele ano.

“A pegada de carbono da humanidade mais do que duplicou desde o início da década de 1970, quando o mundo entrou pela primeira vez em sobrecarga ecológica, e continua sendo o componente de maior impacto sobre o abismo crescente entre a Pegada e biocapacidade do planeta”, explica Mathis Wackernagel, presidente da Global Footprint Network e criador da métrica que estabelece a Pegada Ecológica.

Hoje, 86% da população mundial vive em países que demandam mais da natureza do que seus ecossistemas podem renovar. De acordo com os cálculos da Global Footprint, precisaríamos de 1,5 planeta para suportar a atual Pegada Ecológica mundial. Projeções sobre o crescimento demográfico, o consumo de energia e a produção de alimentos sugerem que a humanidade vai precisar de três planetas bem antes da metade do século 21 – o que pode ser fisicamente impossível. “O uso dos recursos naturais acima da capacidade da Terra está se tornando um dos principais desafios do século 21. É um problema tanto ecológico quanto econômico”, ressalta Wackernagel.

O desafio de alimentar bilhões

Uma das questões mais preocupantes é como alimentar uma população mundial cada vez maior e mais urbana. Desde 2007, mais de 50% dos habitantes do planeta vivem em cidades. E a previsão é de que, até 2050, esse percentual chegue a 80%. Ou seja, em menos de quatro décadas, seremos quase oito bilhões de pessoas consumindo recursos finitos – e disputando alimentos – apenas no espaço urbano. Para agravar a situação, é preciso lembrar que 70% da água limpa da Terra hoje é usada na agricultura.

Nesse cenário desafiador, a agricultura urbana vem sendo apontada como uma solução visionária – e talvez inevitável – para garantir a segurança alimentar e viabilizar a permanência do homem na Terra.

A maioria das fazendas e fábricas agrícolas urbanas é adepta do cultivo orgânico, ou seja, os alimentos produzidos por elas são livres de agrotóxicos. Crédito: divulgação

Um dos precursores na defesa do cultivo agrícola nas cidades é o microbiologista norte-americano Dickson Despommier, professor da Universidade de Columbia e autor do livro “The Vertical Farm: Feeding the World in 21st Century” (“A Fazenda Vertical: Alimentando o Mundo no Século 21”), de 2010. Na obra, ele não poupa críticas ao nosso atual modo de vida e defende que as cidades deixem de atuar como parasitas do planeta e comecem a responder por uma parte significativa de sua demanda alimentar.

Para Despommier, a solução para atingir um cultivo em escalas significativas passa por usar e aprimorar tecnologias já disponíveis, como a hidroponia, e pela construção de edifícios autossustentáveis, capazes de produzir alimentos. Cálculos feitos por ele revelam que um prédio de 30 andares de plantação seria suficiente para alimentar 10 mil pessoas.

O pesquisador defende ainda a requalificação de galpões abandonados – encontrados aos montes nas grandes cidades –, para produzir alimentos a um custo acessível.

As primeiras experiências mostram que a agricultura urbana oferece vantagens que vão além da possibilidade alentadora de que vamos ter o que comer. Como a técnica prevê que grande parte das plantações seja feita em ambientes controlados, baseados em uma combinação de luz solar e iluminação artificial, o uso de água na agricultura poderia ser drasticamente reduzido e os pesticidas, banidos do nosso cardápio.

Outro fator decisivo é a localização. O fato de as plantações já estarem nas cidades, nas chamadas fazendas urbanas, possibilita uma economia significativa em logística e transporte, tornando a produção mais barata e ainda mais sustentável, por causa da redução na emissão de CO2.

Exemplos encorajadores

Em meio à agitação de Londres, uma cena tornar-se cada vez menos incomum: animais pastando tranquilamente em meio a vistosas plantações em áreas preservadas ou readaptadas da cidade.

Embora tenha ganhado um grande impulso nos últimos tempos, o movimento de fazendas urbanas no Reino Unido não é novo. Começou em 1972, com a implantação do primeiro projeto, em Kentish Town, no norte da capital. A partir dela, vieram várias outras. As iniciativas se multiplicaram de tal forma que visitar fazendas urbanas se tornou um programa para várias famílias londrinas.

O Reino Unido tem 200 fazendas urbanas em operação. Acima, visitantes em Kentish Town, em Londres, a primeira do país, implantada no início da década de 1970. Crédito: divulgação

Os espaços costumam funcionar diariamente, graças ao trabalho de voluntários, que são responsáveis pela manutenção e fabricação de produtos como leite, queijo, ovos e mel. Muitas comercializam parte da produção em feiras de produtos orgânicos.

Em 1980, o movimento ganhou um impulso significativo no país com a fundação da Federação das Fazendas e Jardins Urbanos. A organização trabalha para conscientizar a população sobre a importância da atividade agrícola, incentivando uma relação mais próxima com a produção de alimentos, e já capacitou mais de 15 mil voluntários para trabalhar nas cerca de 200 fazendas urbanas existentes no país, sendo 14 delas na região metropolitana de Londres.

Agricultura controlada

Impulsionado pela falta de espaço, o Japão é outro exemplo pioneiro. Lá, os fazendeiros urbanos estão constantemente inovando e investindo em tecnologias capazes de melhorar o desempenho das plantações em ambientes controlados.

O conhecido edifício da agência de empregos Pasona, em Tóquio, onde são cultivados vegetais hidropônicos e até um arrozal, é apenas o exemplo mais emblemático dos muitos que se multiplicam pelo país. Em pouco mais de uma década, o Japão criou 50 fábricas agrícolas, 34 delas baseadas em iluminação artificial e outras 16 funcionando a partir da combinação de luz solar e artificial.

Com cultivo hidropônico de vários vegetais e até um arrozal, a agência de empregos Pasona, em Tóquio, é a mais conhecida dentre as 50 fábricas agrícolas em operação no Japão. Crédito: divulgação

Uma delas foi criada no início deste ano pela fabricante de eletroeletrônicos Toshiba, que decidiu aplicar seus conhecimentos tecnológicos em uma plantação industrial. Em uma antiga fábrica de disquetes, nos arredores de Tóquio, construiu uma fábrica agrícola que já está produzindo vegetais como alface, rúcula e espinafre.

O controle das condições climáticas e a possibilidade de produzir alimentos o ano todo são pontos em comum entre todas elas, além da garantia de alimentos livres de agrotóxico.

Para reduzir a dependência de alimentos importados, Cingapura inaugurou em 2012 o protótipo da primeira fazenda vertical comercial do mundo. Com um território de apenas 710 quilômetros quadrados, grande parte dele urbanizado, a ilha produz apenas 7% dos vegetais que consome. Composta de 120 torres de alumínio, com nove metros de altura cada, a Sky Greens tem capacidade para produzir 500 quilos de vegetais por dia, que são vendidos em uma rede de supermercados do país.

No início 2015, a Toshiba inaugurou uma fábrica agrícola para produzir rúcula, espinafre e alface, em uma antiga indústria de disquetes na capital japonesa. Crédito: divulgação

Outro projeto que já colhe bons frutos, literalmente, além de legumes, vegetais e ervas, está baseado na cidade do Cabo, África do Sul. Criada para celebrar a comida local, a Oranjezicht City Farm (OZCF) começou a funcionar no final de 2012, embora a história da propriedade como produtora de alimentos remonte ao ano de 1700. A fazenda reúne adultos e crianças em sua missão de aumentar o acesso da comunidade a produtos frescos e disseminar informações sobre o cultivo agrícola no espaço urbano.

A história da propriedade onde está a sul-africana Oranjezicht City Farm (OZCF) remonta a 1700. Com vista para a Table Mountain, a fazenda se torno um dos pontos turísticos mais concorridos da Cidade do Cabo. Crédito: divulgação

Ficção x realidade

O projeto de fazenda vertical mais arrojado de que se tem notícia foi pensado pelo arquiteto belga Vincent Callebaut para Roosevelt Island, em Nova York.

Com desenho inspirado nas asas de uma libélula, a Dragonfly tem 350 mil metros quadrados, uma torre de 132 andares e capacidade para abrigar 28 campos agrícolas, destinados à produção de frutas, legumes, grãos e até à criação de gado e aves. Segundo o projeto, a combinação de energia solar e eólica faz com que o edifício seja autossuficiente em termos energéticos. Para garantir o equilíbrio térmico, o ar quente será retido no interior das “asas” e usado como fonte de aquecimento no inverno. No verão, a temperatura mais amena será alcançada com a ajuda da umidade das plantas. O protótipo prevê ainda o armazenamento da água da chuva para a utilização na irrigação.

Criação do arquiteto belga Vincent Callebaut, a Dragonfly é um ambicioso projeto de fazenda vertical: com desenho inspirado nas asas de uma libélula, tem 350 mil m² e capacidade para 28 campos agrícolas. Crédito: divulgação

Na superestrutura imaginada por Callebaut, laboratórios de pesquisa, unidades residenciais, escritórios e áreas comuns são intercalados por pomares, fazendas e salas de produção.

O mais curioso é que, em 2009, quando apresentou o projeto, o arquiteto foi duramente criticado, sob o argumento de que havia criado uma obra de ficção científica. Em menos de uma década, a perspectiva mudou consideravelmente.

Em 2014, a Dragonfly foi um dos destaques da maior feira de soluções para a alimentação da China, além de ter servido de inspiração para o edifício Pasona, em Tóquio.

Callebaut não desistiu de tornar seu sonho realidade e continua em busca de investidores corajosos o suficiente para financiar seu mega projeto. “Considerando que oito bilhões de pessoas vão viver em cidades até 2050, os condomínios habitacionais do futuro terão que ser autossuficientes, funcionando como organismos vivos, com espaços que garantam a preservação da natureza e a atividade agrícola, é inivitável”, já declarou Callebaut. Pela rapidez com que as fazendas urbanas estão se espalhando pelo mundo, a inauguração da Dragonfly em plena Manhanttan não deve mesmo estar muito distante.

 

Crédito: Por Tatiana Engelbrecht