A arte de fazer lugares com arte

Cidades inteligentes e mais bem planejadas, onde pessoas são mais importantes que carros. Esta foi a faísca inicial de uma revolução que a paulistana Paola Caiuby Santiago, idealizadora da organização Conexão Cultural – que promove acesso e conteúdo na área cultural por meio da integração entre diferentes formas de arte –, fez em sua trajetória. O que ela não poderia imaginar é que os reflexos de sua transformação ecoariam muito além de seu universo profissional.
Depois de viver em Barcelona e Paris, Paola Caiuby, fundadora da organização Conexão Cultural, voltou a São Paulo decidida a interagir mais com a cidade e a propor reflexões sobre o uso do espaço público. “A cidade pode realmente nos tocar”. Crédito: divulgação

Formada em Marketing, Paola trabalhou por sete anos em uma multinacional, sendo três deles na Europa, mais precisamente em Paris e Barcelona. Foi quando se deparou com outro estilo de vida e uma forma diferente de construir e planejar cidades, em que as pessoas estão acima dos carros. “Isso me transformou, mudou a minha relação com a cidade. Percebi como eu me sentia melhor andando na rua, fazendo as coisas a pé, passando por lugares bonitos. É muito diferente de estar sempre dentro do carro, cercada de muros, com medo. A cidade pode realmente nos tocar.”

Voltou a São Paulo decidida a interagir mais com a cidade, a andar a pé e a usar transporte público, passou também a questionar os locais tidos como pontos de encontro aqui: bares, restaurantes, shopping centers. “Para mim, esses lugares têm pouca criatividade”, aponta. Na sua temporada fora do país, percebeu que as pessoas ocupavam as ruas, se encontravam em museus, cafés, praças e atividades culturais. “Tive também uma crise de propósito.”

Essas inquietações a levaram a abrir mão do emprego estável e encarar o desconhecido, no caso, a vontade de colocar de pé um blog dedicado a discutir e estimular a cultura em espaços públicos. O ano era 2011 e nascia assim a Conexão Cultural. “Quando você faz algo em que realmente acredita, a coisa flui. E o projeto fluiu.”

Da experiência com o blog, veio a ideia de fazer eventos em espaços multiculturais. O primeiro projeto foi realizado em 2012, no Museu da Imagem e do Som (MIS), com o objetivo de transformar o MIS em um lugar de encontro e estimular o público a ocupar o belo espaço da instituição. Com exposições interativas, shows e atividades do dia todo, a primeira edição do Conexão Cultural São Paulo atraiu mais de 1.000 pessoas. A segunda edição ganhou uma feira gastronômica e despertou o interesse de 2.500 pessoas. Hoje, já se vão nove edições do projeto que não tem data para terminar e entrou para o calendário cultural paulistano.

A partir daí, o projeto sonhado por Paola decolou. Por meio da Conexão Cultural, ela passou realizar ocupações em museus, praças e parques, entre outros espaços públicos. Em 2015, lançou o “Guia do Espaço Público: Para Inspirar e Transformar”, em parceria com Jenniffer Heemann, cofundadora da ONG Bela Rua, que realiza projetos e intervenções urbanas participativas, com o objetivo de estimular as pessoas a transformar as cidades.
O “Guia do Espaço Público”, de Paola Caiuby, acaba de ganhar uma versão impressa dedicada a São Paulo e traz dicas de como criar espaços públicos vibrantes e bem-sucedidos. Crédito: Nathalia Curti 

Disponível digitalmente, o guia traz soluções inovadoras para espaços públicos baseadas na arte, na participação das pessoas e na ocupação da rua. O trabalho está fundamentado em sua experiência à frente do Conexão Cultural, mas também na vivência na ONG Project For Public. Espaces, de Nova York, que há 30 anos se dedica à construção e transformação de espaços públicos nos Estados Unidos. No início de maio, o volume ganhou uma versão impressa, focada em ocupações na cidade de São Paulo.

Na entrevista a seguir, Paola fala sobre placemaking, ou seja, a criação de espaços públicos, e a importância do envolvimento da comunidade no processo de construção de cidades para pessoas.
Cenas da edição de 2015 do projeto Conexão Cultural São Paulo, que leva teatro, intervenções artísticas, música e gastronomia para os jardins do Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, e atrai milhares de pessoas todos os anos. Crédito: Leticia Godoy

O que são espaços públicos e qual a importância desses locais para a sobrevivência e a evolução das cidades?

O espaço público é o espaço da comunidade, do encontro, é onde temos a sensação de que vivemos todos em um mesmo lugar. Temos nossos espaços privados, nossa casa, nosso trabalho, e existem os espaços públicos, onde nos encontramos de alguma forma. Espaços públicos são também aqueles a que todo mundo tem direito: praças, parques, praias, ruas, vielas, museus, bibliotecas. Portanto, quanto mais agradáveis forem esses espaços, menor será o atrito nas cidades.

As cidades são lugares muito diversos, com pessoas, culturas e hábitos totalmente diferentes, então o desafio é encontrar maneiras de diminuir a tensão e criar empatia nesse contexto. Quando um espaço público é bem feito, bem planejado, ele cria esse vínculo.

Tivemos uma experiência interessante na Alameda das Flores [próxima à Avenida Paulista]. Criamos um espaço lá com bancos, música, espaço de leitura e jogos. Ficou bonito, aconchegante, e as pessoas vinham, o executivo, o mendigo, os hippies, os idosos da vizinhança, e ninguém estava incomodado com ninguém ali, ninguém estava inadequado, porque era um espaço feito para todos. Certamente, não existiria tanta desigualdade social se a gente não segregasse tanto.

Tive contato com um exemplo bacana na ONG em que trabalhei em Nova York, a Project for Public Spaces (PPS). O Bryant Park era um parque degradado, frequentado por usuários de drogas, mas superbem localizado, bem no meio de Nova York, em frente ao Bank of America. A PPS foi contratada para repensar esse espaço. A primeira coisa que se falou foi que aquelas pessoas deveriam ser tiradas dali. E o trabalho deles foi justamente convencer todo mundo do contrário, de que aquelas pessoas também pertenciam à cidade e que não tinham que ir embora. O desafio foi pensar como todos poderiam conviver naquele lugar e quando o poder público, a iniciativa privada e a comunidade estão juntos, o espaço dá certo. Foi o que aconteceu lá. Hoje está todo mundo convivendo em um lugar que ficou superágradável. Isso é essencial para uma cidade fluir, não só do ponto de vista dos moradores, mas também dos turistas.
Acima, o Bryant Park, em Nova York: exemplo de espaço público que conseguiu se reinventar sem expulsar os antigos frequentadores. Crédito: reprodução

Como esse contato com práticas de placemaking, ou seja, a construção de espaços públicos, em Nova York, impactou seu trabalho?

Foi muito importante para que eu pudesse organizar e sistematizar coisas que já fazia intuitivamente. Nos Estados Unidos, o placemaking é feito há muito tempo, principalmente com base nos conceitos que Jane Jacob [jornalista norte-americana] defende no livro “Morte e Vida das Grandes Cidades” (1961). Ela questiona as práticas urbanísticas do século 20 e busca encontrar respostas para esse polo de estresse e medo que as grandes cidades se tornaram.

O espaço público é muito isso: se você não cria bairros mistos, ocupados, eles viram lugares-dormitório, vazios, principalmente à noite. Isso faz com que as pessoas fiquem com medo e, para combatê-lo, elas erguem muros. E o medo aumenta ainda mais. A ideia é pensar como os espaços urbanos podem ser mais bem planejados e melhor aproveitados.

Em 2015, participei da conferência Future of Places, da ONU. Um dos diretores da organização abriu a sessão dizendo que precisamos transformar as cidades, porque as pessoas não vão voltar para o campo. Por outro lado, as pessoas não querem mais essas cidades de prédios gigantes e muros altos, isso só segrega e aumenta a tensão social, ambiental e econômica.

Quais são os caminhos para reverter esse quadro e como os espaços públicos se inserem nessa transformação?

Os espaços públicos devem ser lugares de convivência, mas também precisam ser economicamente viáveis, como as feiras livres e de artesanato, entre tantas outras possibilidades. Além disso, o ideal é que sejam cartões-postais das cidades. Partindo desse raciocínio, o desafio é encontrar formas de retomar esses valores em uma cidade como São Paulo.

Hoje, esse movimento está muito forte, borbulhando. Quando começamos, em 2011, as pessoas nos perguntavam se erámos loucas. É como se de repente uma pitada de consciência mudasse tudo. No “Guia do Espaço Público”, mostramos que pequenos gestos como organizar um almoço em uma praça podem mudar nosso jeito de conviver com a cidade.
Com apoio da Conexão Cultural, a iniciativa Almoço na Praça surgiu do encontro entre vizinhos e comerciantes da Vila Madalena e convida as pessoas a usarem as praças públicas para encontros, piqueniques ou apenas para uma pausa em meio à correria do dia a dia. Crédito: divulgação/Conexão Cultural

A Conexão Cultural é uma das iniciativas pioneiras em placemaking no Brasil. Você poderia explicar o que é placemaking e como está a aplicação do conceito aqui?

Placemaking é criar lugares para as pessoas, em parceria com a comunidade, ou seja, repensar o espaço público junto com as pessoas que estão lá e que vão usar aquele local. Não é um processo de cima para baixo, mas sim de baixo para cima.

Para um projeto assim funcionar, não basta criar um projeto sensacional e contratar um arquiteto ou um designer ótimo. O espaço deve abrigar todo mundo que está ali, por isso é preciso ouvir as pessoas. Ele pode e deve ser bonito, ter um desenho interessante, mas o principal é que seja feito para as pessoas, que seja vivo e gostoso de estar.

Já existem muitas iniciativas de placemaking no Brasil, a diferença é que a ONG Project for Public Spaces nomeou, sistematizou e criou uma metodologia para esses processos, partindo do princípio de que “é preciso ter uma comunidade para criar um lugar e ter um lugar para criar uma comunidade”. Isso significa que uma comunidade não funciona sem um espaço público e vice-versa.

Por exemplo, o que a organização A Batata Precisa de Você está fazendo no Largo da Batata é placemaking. O que está sendo proposto para o Minhocão, também. Esse movimento é global, tanto que essa conferência da ONU, foi para discutir a importância dos espaços públicos e incluir o tema na agenda dos presidentes dos 193 países-membros.
A ocupação do Minhocão, em São Paulo, para atividades de lazer da população é um dos exemplos da aplicação do conceito de placemaking no Brasil. Crédito: Athos Comolatti

Quais as diferenças mais marcantes entre os desafios de placemaking em Nova York e São Paulo?

Há muitas diferenças, mas foi bom também perceber as semelhanças. Uma delas foi descobrir que, assim como aqui, o mais difícil é engajar a comunidade, ou seja, trocar ideias, criar empatia, entender o outro e chegar a um consenso. Queríamos muito entender como eles faziam isso e vimos que é realmente difícil. Quando um projeto dá certo, é porque todo mundo está querendo muito mudar. Foi o que aconteceu no Bryant Park, porque a insatisfação era geral.

Uma diferença grande é que a cultura da doação nos EUA é muito forte, além do fato de o país ser mais rico, claro. O Bela Rua, por exemplo, é uma ONG e, como tal, poderia receber muitas doações de empresas interessadas em melhorar os espaços públicos, mas isso não acontece. Nos EUA, os projetos são realizados mais facilmente porque existe essa cultura, as empresas doam, o poder público investe e as grandes fundações, como a Bill & Melinda Gates Foundation, são uma fonte de apoio importantíssima, inclusive de projetos ligados à ONU.

Outra diferença é quanto ao grau de instrução das pessoas. Lá, em geral, elas têm mais consciência sobre a importância dessas iniciativas. Aqui, dependendo do lugar, é muito difícil envolver a comunidade, porque às vezes você está falando com pessoas que passam ou passaram fome. São realidades bem diferentes.

Falando em comunidades vulneráveis, a Sala São Paulo é tida como um espaço público que não deu certo, sobretudo porque o investimento não se refletiu em melhorias para o entorno, ou seja, a Cracolândia. Você acha que mesmo em lugares críticos é possível promover uma revolução nos moldes da feita no Bryant Park?

Com certeza, só que todo mundo precisa querer, não dá para esconder a poeira debaixo do tapete. Temos que entender que as pessoas que estão na Cracolândia são pessoas. É preciso olhar nos olhos delas e tentar entender porque elas estão ali. Se, em vez disso, optarmos por erguer um muro, isso só vai aumentar a raiva e a tensão. Não é ignorando a questão que vamos conseguir resolvê-la. Neste caso, eu acho que essa realidade foi ignorada, talvez porque aparentemente pareça mais fácil ignorar que enfrentar, mas não é. Nova York tem muitos exemplos de bairros que eram muito perigosos e que foram transformados sem tirar as pessoas de lá.

Ao contrário do que aconteceu no Bryant Park (à esquerda), em Nova York, a Sala São Paulo, na capital paulista, não procurou incluir nem dialogar com o entorno, o que comprometeu o sucesso do projeto. Crédito: reprodução/divulgação

Como garantir que essas transformações não vão fracassar?

Se o espaço está vivo, com pessoas, crianças, provavelmente as pessoas que iam lá só para usar drogas não vão querer ir mais, ou então, não vão querer mais se drogar, a dinâmica muda. Quando se opta pela construção de prédios com muros altíssimos, isso não acontece.

Veja o caso do Morumbi, com aqueles espaços públicos escuros e prédios de luxo cercados de muros por todos os lados. As pessoas falam que o Morumbi é muito perigoso. Claro, está todo mundo lá criando isso. As ruas são desertas, quase não há comércio, os condomínios são cheios de seguranças. Tudo isso só piora a situação. No final, o que todo mundo quer é ser enxergado. E quando não é, a pessoa vai se fazer notar, muitas vezes, não da melhor maneira.


No “Guia do Espaço Público”, vocês falam sobre espaços públicos bem-sucedidos. O que é um espaço público bem-sucedido?

Isso depende de vários fatores, mas um espaço público bem-sucedido é, em primeiro lugar, acessível. Podem existir espaços públicos incríveis, mas se as pessoas não conseguem chegar até ele, se não há transporte público, ou se só é possível chegar por um meio de transporte, ele está seriamente comprometido. É essencial que seja acessível de várias formas: a pé, de carro, de bicicleta, de metrô, de ônibus.

Outros pontos importantes são: ter áreas verdes e lugares para sentar, não ser proibitivo (“não pise na grama”, “não traga cachorros” etc.), ter múltiplos usos (ler, jogar, se exercitar fazer piquenique) e estabelecimentos comerciais, casas e escritórios por perto. Em resumo, são espaços atraentes para todos, aonde você chega e vê pessoas jogando capoeira, idosos sentados, um encontro de palhaços, crianças brincando… É um lugar onde todo mundo sente bem, independentemente de onde você é, do que você faz, da sua idade, gênero ou classe social.
Fotos da exposição “Placemaking”, realizada em 2015, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), pela Conexão Cultural em parceria com as ONGs Bela Rua, de São Paulo, e Project for Public Spaces, de Nova York. Crédito: divulgação/Conexão Cultural

Embora você já tenha citado alguns, eu gostaria que você falasse sobre exemplos de espaços públicos inspiradores.

Em São Paulo, museus como o Museu da Imagem e do Som (MIS) e o Museu da Casa Brasileira têm usado seus espaços de um jeito muito interessante, com atividades para todo mundo. Algumas bibliotecas estão seguindo esse caminho, é o caso da Mario de Andrade, no centro. Também temos parques promovendo uma ocupação bacana de seus espaços, como o Ibirapuera e o Villa-Lobos. Há ainda a Praça do Pôr do Sol, que é muito bem ocupada – tem até moradores que não gostam porque é ocupada demais [risos] –, mas é um ponto de encontro, as pessoas se juntam para assistir ao pôr do sol, isso é muito bacana, já teve cinema ao ar livre, tem sempre piqueniques.

É interessante também o que está acontecendo no Largo da Batata. Ver as pessoas montando seu próprio banco ou interagindo em uma mesa de pingue-pongue que alguém deixou ali dá vida ao espaço. O planejamento urbano feito ali é muito ruim, não tem árvore, é um lugar árido, mas as pessoas estão conseguindo fazer uma ocupação de interessante.

Quando o Minhocão está fechado para carros é o máximo. Temos agora a Avenida Paulista aberta às pessoas aos domingos. Tem um monte de gente contra essa decisão, mas eu acho muito legal. Nesses momentos, você consegue sentir que está na cidade, e isso te dá uma sensação de que esse espaço é nosso. Não estamos aqui porque São Paulo dá dinheiro, oferece oportunidades, mas sim porque é uma cidade legal. É preciso quebrar esse pensamento de ir para o trabalho, ganhar dinheiro e fugir para outro lugar.
A Avenida Paulista aos domingos, quando é aberta para ciclistas e pedestres, e a Praça do Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros: espaços públicos inspiradores em São Paulo. divulgação/reprodução

E no exterior, você conheceu lugares que serviram de referência para os projetos que a Conexão Cultural faz aqui?

A Europa tem muitos exemplos de bom uso do espaço público. Em Barcelona, tem o Parque da Ciudadela, que é muito vivo, é um ponto de encontro mesmo. É interessante também ver como as pessoas cuidam. Porque aqui, às vezes, se vê tanta sujeira em lugares como o Ibirapuera que é desanimador. Lá, é nítido como as pessoas se sentem pertencentes a esses espaços. Outro local interessante é o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, que organiza feirinhas gastronômicas, cinema ao ar livre na fachada.

Em Paris, só de as pessoas fazerem piquenique no gramadão da Torre Eiffel ou nas margens do Rio Sena já é o máximo. Imagine se a gente tivesse cuidado do Rio Tietê, se ele tivesse bares, barcos-casas, uma prainha…

Berlim é outro lugar que leva a questão do espaço público muito a sério. A cidade é verde e as pessoas estão na rua. Um lugar emblemático é o Tempelhofer Park, construído no antigo aeroporto dos nazistas. Foi muito difícil decidir o que seria construído ali, até por ser um lugar com uma carga muito forte. Quando o setor imobiliário começou a aventar a possibilidade de construir prédios e casas, a população foi firme e não abriu mão de ganhar mais um parque. Hoje, é uma área enorme, onde as pessoas andam de skate, de bicicleta, fazem piquenique, jogam baseball, passeiam com as crianças. Isso mostra como é possível dar vida até para espaços com uma história péssima.

Em Nova York, são vários os casos, começando pelo High Line Park, passando pelo Bryant Park, como já citei, e pela Union Square, que era uma pracinha estreita, por onde passava um monte carros e foi transformada em um espaço para pedestres, o que é muito importante. Se há mais calçadas e se elas são boas, largas, as pessoas vão andar mais a pé. Se a calçada é estreita, esburacada, elas vão preferir o carro.

Você falou sobre a relação do sentimento de pertencimento e o cuidado com os espaços públicos na Europa. Na sua visão, nós ainda não nos apropriamos totalmente desses lugares?

Estamos em um momento de transição. Fiz uma apresentação sobre o Brasil na conferência da ONU, falando sobre o que está acontecendo em termos de espaço público por aqui. Meu primeiro slide foi uma foto daquela manifestação de 2013 que parou o país, quando milhares de pessoas percorreram São Paulo a pé por horas. Aquilo foi um despertar, surgiu tanta coisa depois desse dia: mais coletivos querendo ir para as ruas, mais pessoas questionando as opções de mobilidade. As coisas estão mudando, estamos nos apropriando da Avenida Paulista aos domingos, as pessoas estão indo para aos museus, é uma transformação.

Imagine se o minhocão for transformado em um High Line? Se o projeto for bem feito, vai ficar incrível. Mas não pode ser só especulação imobiliária, com prédios muito caros, expulsando os moradores que estão lá, isso segrega demais.
Os jardins da emblemática Torre Eiffel, em Paris, e o High Line Park, em Nova York, são alguns exemplos de como a ocupação das pessoas pode dar vida a um espaço e melhorar a qualidade de vida nas cidades. Crédito: reprodução

Essa questão que você levantou é bem importante. É essencial que os bairros tenham um pouco de tudo, sejam variados, que o crescimento seja equilibrado.

Claro. Se todos os prédios que serão construídos próximos ao Minhocão forem caríssimos, isso vai expulsar as pessoas que não podem pagar. A consequência é que a cidade vai continuar crescendo para o lado, totalmente desestruturada, mal planejada. É preciso não só manter essas pessoas nesses espaços como também dar novas oportunidades a elas.

O Brooklyn, em Nova York, não era um lugar muito cobiçado até a vida em Manhattan se tornar absurdamente cara. Mas já era uma região muito criativa, um lugar de artistas, imigrantes, intelectuais e gente mais alternativa. Com a especulação imobiliária, as pessoas que ganham dinheiro em Manhattan e estão em busca de criatividade começaram se mudar para lá. Vieram os prédios caríssimos, e os antigos moradores tiveram que se mudar.

Quando morei em Nova York, fiquei em um bairro no Brooklyn que estava começando a ficar mais bacana, a ter prédios legais, mas que tinha uma mistura de estabelecimentos comerciais mais sofisticados e outros bem simples. Percebi que os imigrantes continuavam ali, que não tinham sido expulsos, e quis entender como essa transformação estava acontecendo.

Soube que uma empresária que veio de Manhattan para abrir um café descoladíssimo ensinou o proprietário de um lugar mais simples como ele poderia ser reinventar, como a fachada dele poderia ser mais bacana, como ele poderia usar produtos de melhor qualidade, comprados de produtores locais, orgânicos. E ele ensinou isso a outro comerciante, que ensinou a outro, e assim foi. Resultado: eles não foram expulsos. Então, a grande questão é: como é possível ajudar o outro a criar, em vez de excluí-lo?

Você acredita em modelos de sociedade colaborativos? De certa forma, você acabou de citar um.

O extremo, com todo mundo igual, com tudo muito colaborativo, eu acho muito extremo e improvável. Cada ser humano é diferente e tem ambições diferentes. Eu só não acredito na grande desigualdade, de haver uns com muito e outros com muito pouco. Sempre vai haver quem tenha mais e quem tenha menos, mas essa diferença não poder ser tão gritante. Isso, para mim, é o que gera os maiores atritos. A economia colaborativa é muito interessante, talvez seja o futuro, mas ainda temos que evoluir muito como indivíduos para conseguirmos colocá-la em prática de verdade.

A Conexão Cultural trabalha bastante em parceria com incorporadoras e imobiliárias interessadas em construir empreendimentos mais amigáveis. Como é possível estabelecer essa relação de troca com a cidade?

O primeiro passo é dialogar com o bairro onde se está. Se determinada construtora entra em um bairro que já tem um perfil estruturado, o ideal é que ela respeite esse perfil e proponha uma construção que possa contribuir para melhorar esse lugar. Certamente, a solução não é erguer muros altíssimos, instalar milhões de grades, como a maioria das empresas faz.

É possível melhorar aquele lugar cuidando da calçada, tendo um espaço de uso público no térreo, fazendo opções construtivas mais sustentáveis (compostagem, reuso de água, iluminação natural), conversando com a comunidade, fazendo um planejamento da obra em parceria com as pessoas que vão executá-la. O principal ponto é assumir que você vai entrar em um bairro e vai fazer muito ruído. A partir daí, é preciso buscar formas de diminuir esse ruído.

Uma incorporadora nos perguntou uma vez se não poderia distribuir brigadeiros para os vizinhos. Eu disse: “Claro que não, eles vão jogar na sua cara.” [risos] Um brigadeiro não diminui em nada o incômodo que uma obra de dois anos vai causar. Mas há muitas formas de melhorar.

Em Nova York, eu vi uma coisa bacana. Lá, constrói-se e reforma-se muito, tem sempre aqueles andaimes pela cidade inteira. Para diminuir essa poluição visual, as empresas estão apoiando soluções criativas, como instalar luzinhas, bancos, tapumes com arte nessas estruturas, ou seja, é um jeito mais simpático de fazer a coisa.
Paola Caiuby (à esquerda) e colaboradores da Conexão Cultural em ação no projeto Quadra Amiga, que revitalizou casas, instalou lixeiras e realizou oficinais de educação ambiental na Vila Mascote, em São Paulo. Crédito: Gabriel Quintão

Como a cultura se insere no futuro das grandes cidades e em que medida ela pode transformar a realidade?

Eu vejo a arte como uma ferramenta de transformação e inspiração. Imagine uma cidade sem um teatro, um cinema, um artista de rua, seria muito triste. Eu enxergo tudo isso como um motorzinho que pode inspirar cada um. Acredito que todo mundo tem um lado criativo, é o que garante nosso brilho e alimenta nossa alma. Sem ele, a vida fica muito dura. Você vai para o trabalho – um trabalho que muitas vezes que não é criativo – e volta para casa. Sem a cultura, esse ciclo fica muito consumista, é o extremo do capitalismo.

De alguma forma, nós vivemos isso, mas estamos percebendo que esse modelo não se sustenta, nem monetariamente nem emocionalmente, ou não veríamos tantas pessoas infelizes, tomando remédios, antidepressivos.

Esse modelo de consumo não está funcionando. O mesmo vale para esse consumo do entretenimento, em que a pessoa chega a um determinado lugar, tira uma foto para postar no Facebook e vai embora sem nem saber o que está acontecendo ali, ela não está sendo tocada. A experiência com a cultura tem que ser mais sutil, mais sensível, com artistas e pessoas que estejam lá de verdade. O foco não pode ser só monetário.

Tem se falado muito de cidades para pessoas, principalmente desde que Copenhague foi revitalizada pelo arquiteto Jan Gehl e virou exemplo de planejamento urbano. O que é uma cidade para pessoas? Fale de uma cidade emblemática nesse sentido. Uma cidade para pessoas é uma cidade pensada com as pessoas e feita pelas pessoas – e não por poucas pessoas. É uma cidade que, arquitetonicamente e estruturalmente, foi planejada para o bem-estar dos cidadãos.

A Europa me inspira bastante, mas Berlim é uma cidade especial. É impressionante pensar em tudo o que os berlinenses passaram e ver como conseguiram construir uma cidade verde, colaborativa, com soluções inovadoras de mobilidade, espaços públicos vibrantes e incentivo ao consumo local. É muito claro ali o poder que as pessoas têm e como elas conseguem transformar um lugar quando se mobilizam.

E o que é morar com qualidade para você?

Primeiro, é você sair de casa e sua calçada ser caminhável. Depois, é você conseguir fazer a maioria das coisas a pé, ir ao supermercado, à farmácia, ter bares e restaurantes próximos. É também estar em uma cidade verde e arquitetonicamente bonita, em que se nota um cuidado.

Morar com qualidade é, na verdade, estar em uma cidade viva, criativa, que consiga mudar junto com seus moradores, que seja mista, misturada, e que seja capaz de abrigar e incluir diferentes tipos de pessoas.
“Berlim é uma cidade especial. É impressionante pensar em tudo o que os berlinenses passaram e ver como conseguiram construir uma cidade verde, colaborativa, com soluções inovadoras de mobilidade, espaços públicos vibrantes e incentivo ao consumo local”, diz Paola. Crédito: divulgação/reprodução

 

Créditos: Texto Tatiana Engelbrecht