A cidadela de Matteo Gavazzi

“Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, é minha ‘Pátria de Escolha’”. Era assim que a arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), autora de ícones do modernismo, explicava sua opção de vida. Nascida em Roma, ela adotou o Brasil. E foi adotada por ele.

A fala de Lina bem poderia resumir o encontro de outro inquieto italiano com o Brasil – mais precisamente, com São Paulo. Também nascido em Roma e também naturalizado brasileiro, Matteo Gavazzi, 28 anos, escolheu o Brasil há sete anos. Hoje é proprietário da Refúgios Urbanos Consultoria Imobiliária e idealizador das plataformas Prédios de São Paulo e Casas de São Paulo, que tem a proposta de resgatar e contar a história de construções simbólicas da paisagem paulistana. O livro Prédios de São Paulo chega à segunda edição em dezembro, trazendo outros 36 prédios perfilados. O volume está sendo viabilizado graças a uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo. Assim como o primeiro volume da série.

Matteo descobriu o Brasil ainda na infância. Filho de um executivo que viveu por muitos anos no país, costumava passar férias em São Paulo. “Eram as típicas férias de filho de pais separados”, lembra. Em 2010, cruzou o Atlântico definitivamente, no auge da euforia em torno do nosso crescimento econômico. Na maior cidade brasileira, encontrou solo fértil para pôr suas muitas ideias em prática.

Na entrevista a seguir, Matteo fala das belezas (e mazelas) da metrópole que o fisgou, das oportunidades (e agruras) do mercado imobiliário, do sucesso do projeto Prédios de São Paulo e de sua fórmula para o Brasil decolar.

Por que o Brasil? Por que São Paulo?

Quando decidi abandonar a faculdade em Roma e mudar de país, o Brasil era uma opção interessante, tinha acabado de pegar a Copa do Mundo, as Olimpíadas, havia uma grande euforia. A Europa não era uma opção naquele momento, porque a situação dos países era mais ou menos parecida. E os Estados Unidos são um mercado muito mais competitivo. Apesar da minha familiaridade com o Brasil, eu nunca tinha morado em São Paulo – nem em uma metrópole desse tamanho. São Paulo é uma nação, não chamaria nem de cidade. Roma é uma metrópole porque tem milhões de habitantes, mas é relativamente pequena.

Num primeiro momento, fui para Santos. Logo percebi que a cidade não tinha a minha medida e comecei a vir para São Paulo. Confesso que a primeira coisa que a gente pensa de São Paulo não é: “que cidade linda, maravilhosa”. O sentimento vai acontecendo com o tempo, e cada um encontra a sua forma de se apropriar da cidade. A minha foi perceber as suas belezas. O lado dos negócios é muito bacana, mas eu não teria ficado aqui só pelo dinheiro. Para quem vem de uma cidade como Roma, o dinheiro e as oportunidades não seriam suficientes. São Paulo tem muita história, foi isso o que me fez ficar.

E como nasceu a Refúgios Urbanos?

A Refúgios Urbanos é fruto de um processo. Comecei a trabalhar em São Paulo como empreiteiro no final de 2010 e notei que havia uma dificuldade de comunicação muito grande entre os clientes e os prestadores de serviço na área da construção, o que gerava estresse para os dois lados. Como eu cresci num lugar onde não há tanta diferença de classes, sempre estudei em escola pública e, portanto, não tenho dificuldade de me relacionar com pessoas de nenhuma classe social nem profissão, percebi que eu poderia resolver problemas – e tudo o que resolve problemas é bom, né? [risos] E foi mesmo, porque era uma época de grande otimismo, especialmente no mercado imobiliário.

Trabalhar como empreiteiro era legal, mas muito cansativo. E como eu ficava bastante nas obras, notei que os corretores que visitavam os imóveis nem sempre eram profissionais. Nos Estados Unidos, o corretor de imóveis é “o cara”. Um corretor em Nova York ganha mais que muitos médicos, advogados, executivos. Aqui, a profissão muitas vezes é considerada de série B. Por outro lado, muita gente vira corretor meio período e a informalidade é tolerada, tanto que muitos se dizem corretores e trabalham sem ter a habilitação do CRECI [Conselho Regional de Corretores de Imóveis]. Em qualquer país que tenha a ética como princípio, seria como se passar por médico não sendo formado. Há quem diga que o CRECI não determina se um corretor é bom ou não. Bem, então não vamos mais exigir carteira de habilitação porque não é a CNH que define se o cara dirige bem ou não, certo?

Como você partiu para a corretagem definitivamente?

Comecei a procurar possibilidades nesse mundo. Fui trabalhar no Casas Bacanas, uma empresa-butique que estava começando a delinear, junto com a Axpe e outras imobiliárias, um tipo de mercado que se diferencia pela curadoria de produto e atendimento. A vaga era em Higienópolis, o que foi muito legal, porque eu comecei a me apaixonar pela arquitetura de São Paulo. Até então, eu vivia na Bela Vista e trabalhava no Baixo Augusta, lugares onde a qualidade arquitetônica não é das melhores, embora existam coisas bonitas. Em Higienópolis, é muito mais fácil de admirar e se aproximar da arquitetura, até porque você dá de cara com painéis artísticos, mosaicos, elementos bem preservados. Depois, passei a atuar como corretor autônomo em Higienópolis. Em 2013, criei a Refúgios Urbanos. No início, era só uma máscara para a minha pessoa, porque atrás dela só tinha eu. Aos poucos, a coisa evoluiu e as pessoas foram chegando. Pessoas, aliás, que estão comigo até hoje e são meu grande orgulho.

Matteo com a equipe de sua consultoria de imóveis, a Refúgios Urbanos: “são o meu grande orgulho”. Crédito: divulgação

A Refúgios Urbanos trabalha apenas com prédios históricos?

Essa é a nossa especialidade, embora não que seja o que a gente mais vende. Na verdade, vendemos qualidade de vida. Todo mundo sempre quer brigar por metro quadrado e preço. Eu tento fazer a pessoa entender que, entre pagar um metro quadrado mais barato e ficar longe da escola do filho, do parque onde ela passeia com o cachorro, dos restaurantes que ela frequenta, o prejuízo é dela – e não meu. Mas isso acontece porque o mercado de imóveis no Brasil é muito jovem, estamos falando de um período de menos de duas décadas em que o brasileiro de classe média passou de inquilino a proprietário. O cliente ainda tem muitas convicções que são passadas pelo marketing, como a superioridade do novo, a supervalorização das vagas de garagem, das suítes. Muitas vezes, essas coisas não servem para ele. Eu sempre pergunto, por exemplo, se a pessoa cozinha. Se ela diz que não, questiono se faz sentido ter uma varanda-gourmet. Por que não simplesmente comprar um apartamento bacana, com tudo o que ela realmente precisa em um lugar legal?

Talvez isso aconteça porque as pessoas ainda têm dificuldade de enxergar o imóvel como uma casa e não só uma oportunidade de negócio, não?

Sim. As pessoas trocam bastante a palavra novo por qualidade. Isso é fruto da americanização que existe no Brasil, o Sonho Americano. Muita gente acha que só o novo serve e que é preciso se desfazer do velho. Eu falo para os clientes: imagine se não se construía melhor em uma cidade que era feita para 2,5 milhões de pessoas, como nos anos 1950 e 1960, do que hoje, com 11 milhões de pessoas? Não tem mais espaço, tudo é construído com o mínimo para fazer o máximo.

Já foi comprovado cientificamente que, se você mora em um lugar ruim, sua vida será ruim. Essa é a realidade. Se você não tiver uma janela boa, não entrar luz no seu quarto, você vai acordar de mau-humor e ter um dia ruim. Quanto vale morar num lugar que realmente te representa? Qual é o valor de receber os amigos e a família com prazer? Pode parecer besteira, mas faz toda a diferença.

Você criou um projeto de sucesso, o Prédios de São Paulo, que conta a história dos edifícios históricos da cidade. Como nasceu a ideia?

O projeto nasceu das minhas andanças como corretor e da constatação de que não existia um site que contasse a história dos prédios históricos de São Paulo de forma despretensiosa. Existe a falsa crença de que tudo está no Google, mas não está. Além disso, o papo de arquitetura é muito limitado aos arquitetos. Por exemplo, até há teses falando sobre o Edifício Lausanne [em Higienópolis], mas quem busca uma informação pontual não vai ler uma tese inteira. O Prédios de São Paulo foi pensado como uma plataforma onde as pessoas – qualquer pessoa, não só clientes da Refúgios Urbanos – pudessem descobrir a história desses edifícios. Democratizar essas informações faz com que as pessoas valorizem e se apropriem do patrimônio. Aliás, você sabia que qualquer um de nós pode pedir o tombamento de uma construção? Não se trata de ser proprietário, e sim de viver a cidadania em sua plenitude.

Primeiro prédio residencial projetado por Adolf Franz Heep (1902-1978), o Edifício Lausanne, em Higienópolis, foi retratado no primeiro volume de Prédios de São Paulo. Crédito: Guilherme Marcato/Prédios de São Paulo


Falando em patrimônio, como a cidade de São Paulo lida com seu patrimônio histórico e arquitetônico?

Costumo brincar que pode chegar qualquer sultão em Roma querendo comprar o Coliseu, a Capela Sistina que a gente não vende, não tem chance. Guardadas as devidas proporções, acho que já vendemos vários Coliseus brasileiros e paulistanos. Quando você demole os palacetes do Conde de Prates, todas as casas da Paulista, você já vendeu seu Coliseu. Essas construções são protegidas pelos órgãos públicos, mas existe uma burocratização que os torna não valiosos. Herdar um imóvel tombado no Brasil é quase uma condenação, um abacaxi. É aquela coisa que a pessoa pensa: “Isso tinha que acontecer justamente comigo?” [risos] Sem contar os tombamentos que não fazem nenhum sentido, como o do Bixiga, um bairro que historicamente sempre foi de classe média baixa, desde a prápria ocupação dos imigrantes italianos, que escolheram aqueles lotes por serem baratos e ali formaram os famosos cortiços. Em cada quarto morava uma família. Hoje esse tipo de aluguel-pensionato ainda continua. O bairro já é desorganizado, aí ele é tombado sem nenhum planejamento e as pessoas passam a ter complicações para fazer uma reforma básica. O que aconteceu? Virou um lugar com um monte de imóveis caindo aos pedaços, quando poderia ser um dos bairros mais legais de São Paulo.

O Prédios de São Paulo nasceu com o viés de levantar essas questões?

Eu levo as coisas muito a sério. Até os meus hobbies sempre quis fazer da maneira mais profissional possível. Neste caso, encontrei os parceiros certos. A Milena Leonel, que fotografa e edita o livro, o Emiliano Hagge, que fotografa desde a primeira edição. No novo volume, temos uma nova colaboradora, a fotógrafa Carolina Mossin. O projeto começou em 2014, com a página no Facebook. Depois, vieram o perfil no Instagram e o site. Quando já tínhamos material suficiente, nos lançamos na aventura do financiamento coletivo para fazer o primeiro livro. Conseguimos alcançar a meta em cinco dias. Na segunda vez, para a reimpressão, batemos a meta em dois dias. Para o segundo livro, a meta foi alcançada em 15 horas. Fizemos e distribuímos 4.500 livros na primeira edição e devemos produzir mais 2.000 do segundo volume. Os dados dizem que um best-seller no Brasil tem 10 mil cópias, isso significa que o Prédios de São Paulo já é mais do que “meio best-seller” [risos].

Acima, à esquerda, capítulo da primeira edição do livro Prédios de São Paulo dedicado ao Edifício Itália e, à direita, capa do segundo volume, a ser lançado em dezembro. Crédito: divulgação

Existem outras páginas do gênero: Prédios do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, Curitiba, Londrina, Recife etc. Como funcionam esses outros projetos?

Esses projetos nasceram organicamente. Acredito que a cultura não tem que ser “copyrightada”. Eu não tenho condições de fazer o Prédios do Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro… É muito mais interessante que uma pessoa do lugar faça. No caso desses projetos, todas as pessoas entraram em contato comigo. Eu disse que achava a ideia muito legal e que daria todo o apoio que pudesse. Mas, sendo bem sincero, a maioria não vingou. No fim, é um trabalho e tem custo. Os mais adiantados são o Prédios de Porto Alegre, Prédios de Curitiba e Prédios do Recife.

É preciso fazer um investimento de tempo e dinheiro. Para criar uma rede orgânica de seguidores, o trabalho precisa ter relevância e qualidade. A ideia por si só não anda sozinha, todo mundo tem ideias bacanas. Se outra pessoa tivesse contratado um fotógrafo, feito a pesquisa bem feita, investido em um logotipo interessante, poderia ter conseguido os 37 mil seguidores que alcançamos de uma forma totalmente orgânica. O Prédios de São Paulo já ultrapassou a página da Refúgios Urbanos, que existe há mais tempo e nessa eu coloquei dinheiro [risos].

Acima, o idealizador do Prédios de São Paulo com seus parceiros no projeto, os fotógrafos Carolina Mossin (à esquerda), Milena Leonel e Emiliano Hagge. Crédito: divulgação

Muita gente não sabe que o Prédios de São Paulo é uma iniciativa da Refúgios Urbanos. É um projeto com vida própria, o que é interessante.


Isso que você está dizendo é muito legal. Nós mostramos o Prédios de São Paulo a nossos clientes, claro, mas o foco do projeto não é vender. A Refúgios Urbanos alimenta o Prédios de São Paulo e vice-versa. São seres independentes, mas interdependentes. Vou dar um exemplo: captamos um apartamento no Edifício São Luiz. É o prédio mais luxuoso da Praça da República, foi projetado por Jacques Pilon [1905-1962]. O apartamento estava no mercado há um ano quando fomos procurados. Imediatamente, comprei um livro do Lefèvre [José Eduardo de Assis Lefèvre, presidente do Condephaat] sobre a Avenida São Luiz, que conta a história do edifício desde sua concepção. De novo, não tinha nada sobre isso no Google. Fomos conversar com o proprietário com esse embasamento e mostramos que poderíamos apresentar o imóvel de forma mais completa. Ele acabou nos contando que o apartamento havia sido comprado do ex-presidente João Goulart. Ele não teria nos dado essa informação se não tivesse percebido nosso interesse. A Refúgios foi a única imobiliária a anunciar o apartamento com a história completa, tanto do edifício quanto do imóvel. Conseguimos uma proposta em uma semana.

Ao escolher um lugar para abrigar a sede Refúgios Urbanos, Matteo optou por um prédio a poucos metros da Catedral da Sé: “Instalei meu escritório aqui porque adoro o centro”. Crédito: Shutterstock

Falando sobre o centro, por que você decidiu instalar sua empresa nos arredores da Praça da Sé?

Por uma questão de coerência, tem muita gente que cobra a revitalização do centro, mas mora na Faria Lima e trabalha não sei onde. Instalei meu escritório aqui porque adoro o centro, sabia que seria muito feliz aqui e que trazer as pessoas para cá seria quase uma missão, embora ainda seja difícil. Depois que elas vêm, elas curtem e percebem que não foi perigoso, que é prazeroso, que é possível trabalhar bem aqui e que temos até internet [risos]. O centro é muito barato, poderia ser a solução para todo mundo que quer ser independente, abrir a primeira empresa. Para mim, foi. Nunca teria montado a Refúgios como um escritório se tivesse que alugar um conjunto na Paulista, por exemplo.

O que falta para a revitalização do Centro se tornar realidade?

Faltam mais pessoas que tenham a coragem de vir para o Centro, essa é a verdade. Não é preciso revitalizar, existe vida em abundância no centro, é preciso requalificar e cuidar. Isso não vai acontecer somente pelas mãos do poder público. As pessoas precisam reocupar o Centro. O acesso é muito fácil, é barato, não tem desculpa. Só que é um lugar não tão óbvio. Faltam também residências, esse é um dos maiores problemas, mas poderia ser facilmente resolvido se soubéssemos aproveitar a grande quantidade de prédios subutilizados.

A ocupação depende de todos nós. Nosso calçadão poderia ser como as Ramblas de Barcelona, as pessoas poderiam ocupá-las à noite, seria fantástico. Só que, com tudo fechando às sete da noite, fica complicado. No meu caso, a solução ainda é morar na Bela Vista e trabalhar aqui. Estou há três anos nesse escritório e nunca tive uma situação em que tivesse me sentido inseguro. Tem ladrão, claro, mas isso faz parte do panorama de São Paulo. Não é um “privilégio” do centro nem acho que estejam em maior quantidade aqui.

As pessoas gostam tanto de olhar para fora e não enxergam que poderíamos facilmente copiar muitas das coisas que são admiradas em outros lugares. O centro é o melhor lugar de qualquer cidade do mundo. Em Barcelona, Roma, Paris, o centro histórico é o lugar mais legal. E aqui não é valorizado como deveria, mesmo tendo grande potencial.

A insegurança ainda é uma queixa comum em relação ao centro. Como você vê essa questão?

Fazendo palestra em faculdades tradicionais de São Paulo, percebo que os jovens não andam a pé. Vivem enclausurados, só saem de carro. Pisar na rua é pisar no estacionamento do prédio ou do shopping. Para muitas pessoas, a vida é o colégio particular, o clube, o shopping, o mundo equivale ao bairro onde vivem. A verdade é que a diversidade social gera medo. Se uma pessoa assim vem ao centro, ela acha que é perigoso porque vê gente diferente dela. Isso é uma loucura, pois quanto mais a rua é ocupada, mais ela é segura. Na verdade, o centro incomoda porque é muito democrático e não estamos 100% prontos para a democracia. Aqui tem de tudo: mendigo, advogado, camelô e por aí vai. E todo mundo convive e ocupa o espaço de uma maneira melhor – ou pior, dependendo do caso –, mas é um bom exemplo do que a cidade deveria ser.

A maior diferença entre São Paulo e outras cidades do mundo onde morei é como as pessoas se sentem donas do espaço público lá fora, independentemente da classe social. Existe uma democratização do saber e da história que deixa todo mundo mais ou menos nivelado. É preciso olhar para essas coisas, não dá para continuar fugindo. Podemos ser um país muito mais rico se todos forem mais bem educados, tiverem mais bem-estar. Vivemos em um país continental, a desculpa da falta de riqueza não existe, tem riqueza para todo mundo.

Acima, a efervescente Ramblas, um dos símbolos de Barcelona, que poderia servir de exemplo para o centro de São Paulo. Crédito: reprodução

Eu estou descobrindo as facilidades do centro e estou achando ótimo. Venho de metrô, consigo comer bem sem gastar muito, tem muitos serviços e muita diversidade de tudo.

E sem perder a qualidade, porque tem opção para tudo. Isso é maravilhoso. Ninguém aqui na Refúgios tem carro, e não é por uma imposição minha. É porque realmente para o corretor não vale a pena. Eu sempre brinco: como um troço que pesa cinco toneladas pode dar mais mobilidade? Você tem que pará-lo em algum lugar, se preocupar com ele, pagar estacionamento. Ele não dá mais mobilidade, ele tira. Essa é outra falsa crença do paulistano, de que só o carro é bacana, mas por quê? Porque a cidade foi se espalhando de tal maneira que só de carro era possível alcançá-la. Agora as pessoas estão percebendo que foram fraudadas, que morar na Granja Julieta e demorar três horas para chegar ao trabalho não é um bom negócio, mesmo tendo uma BMW. Quer dizer, se a pessoa tiver um helicóptero, aí resolve. Eu brinco, mas essa mentalidade levou São Paulo a ser a cidade com o maior número de helicópteros do mundo, ultrapassando Nova York.

Mas viver assim não é ter qualidade de vida e as pessoas estão começando a se dar conta disso, não é?

Com certeza. Pela primeira vez em São Paulo, pelo menos desde que eu vivo aqui, estou vendo uma apropriação da rua. A única coisa da Itália que me faz falta é a possibilidade de vivenciar o espaço público tranquilamente. Fico muito chateado com essa neura em relação ao espaço público. Para mim, o programa de sexta-feira e sábado é sentar na calçada com os amigos e tomar uma cerveja. O fato de eu viver na Bela Vista tem um pouco a ver com essa busca. Eu moro na Rua Rocha, no Bixiga, e tem uma pizzaria do lado da minha casa que tem uma mesa só para mim. É uma pizzaria de entrega, mas às sextas e sábados eu falo: “Iracema, você bota uma mesa aqui para mim?”. Não é uma calçada legal, fica do lado de um orelhão, mas é a rua. Para mim, é muito melhor estar lá comendo uma pizza que não é tão perfeita assim, do lado de um orelhão, do que fechado numa pizzaria de shopping.

Como você falou, é nítido o aumento do uso dos espaços públicos em São Paulo. Qual a importância dessa mudança de postura em relação à cidade?

A crise ajudou nesse processo, as pessoas estão cansadas de gastar dinheiro para terem lazer. Isso é resultado de um processo sociológico instaurado pelos americanos de que você vai para o shopping porque fora dele é perigoso. O Minhocão está incomodando porque oferece uma opção de lazer gratuita. Para mim, a história é essa. Ele incomoda porque antes não existia no bairro um lugar onde se pudesse praticar ioga, assistir a um espetáculo teatral ou levar seu cachorro para passear sem custo. O interessante, voltando à crise, é que hoje o Minhocão é usado não só pelas pessoas de classe média, que sempre usaram, mas também pelo executivo que vai lá para andar de bicicleta com a filha e correr, porque ele também tem a necessidade de viver o bairro e ter um espaço ao ar livre. Mais cedo ou mais tarde, todos vamos acordar desse torpor do consumismo a qualquer custo para termos momentos de alegria no tempo livre.

Fechado aos fins de semana para carros, o Minhocão pode vir a se tornar um imenso parque linear, nos moldes do High Line, em Nova York. Crédito: Athos Comolatti/Associação Parque Minhocão

Já que você tocou nesse assunto, o que você pensa sobre a questão do Minhocão?

Olhando de cima, a região de Campos Elísios, República e Santa Cecília é extremamente árida. Não tem uma praça, um lugar ao ar livre. O Minhocão, por mais feio e árido que seja, é uma solução. Veja o High Line, que é o Minhocão nova-iorquino. Ele também estava numa região árida e se tornou uma solução de lazer muito bacana, um exemplo de requalificação urbana e de como de um erro pode nascer um acerto. No nosso caso, o melhor seria demolir algumas partes e transformar outras em parque. O Minhocão é muito extenso, são 3,3 km. O High Line tem 1,8 km. A solução mais bacana seria deixar uma escala suficiente para as pessoas correrem, andarem de bicicleta e eliminar os pontos que ficam muito próximos aos prédios. Poderia até se manter algumas ilhas, tipo praças, brinquedotecas, equipamentos urbanos. O melhor dessa história é que a internet vai permitir que os próprios cidadãos decidam, porque sinceramente espero que os concursos públicos, como são feitos hoje, estejam condenados à morte.

Por quê?

Uma vez que o concurso público produz aberrações como a Praça Roosevelt e o Largo da Batata, fica claro que as pessoas que decidem não estão aptas a escolher pela população. Se for preciso haver concurso público que ele seja votado pela população e não pelo arquiteto não sei das quantas ou pelo professor da faculdade “x” que não sabe o que a população da região realmente precisa. Sem querer ofender ninguém, mas o resultado desses lugares é visivelmente ruim. As pessoas tiveram que se apropriar deles para torná-los “habitáveis”. O processo tem que ser muito mais de baixo para cima e não o inverso. Quem habita esses lugares é que deve discutir e decidir que tipo de espaço quer.

Você cresceu na Europa, onde o patrimônio arquitetônico é levado a sério. O que tem de especial na arquitetura paulistana?

São Paulo é uma cidade relativamente jovem. Até 1870, era um vilarejo. Não tinha nada, as casas eram de taipa, as pessoas moravam nas fazendas. Com o fim da escravidão, começaram a ser importados os imigrantes para substituírem os escravos. Entre 1870 e 1915, a população de São Paulo passou de 22 mil para 500 mil pessoas. Deve ser uma maluquice ver sua cidade sendo invadida por um número 50 vezes maior de pessoas. E os imigrantes começaram a construir uma cidade diferente. Para mim, está muito claro que nesses 150 anos são três cidades que se sobrepõem. A colonial, que está praticamente extinta e que tivemos até que reconstruí-la, a europeia e a modernista/moderna, que se sobrepõe e entrelaça a essas duas.

Quando você diz que a cidade colonial foi reconstruída, você se refere a que exatamente?

Pouca gente sabe, mas o Pátio do Colégio foi reconstruído nos anos 1970. Até então naquela região havia o Palácio do Governo, que era lindíssimo e fazia parte de um conjunto de três palácios que o Ramos de Azevedo [1851-1928] construiu no Pátio do Colégio. Sobraram dois, que são o Palácio da Secretaria de Justiça e o da Defesa da Cidadania. Foram os primeiros edifícios do Ramos de Azevedo em São Paulo.

Com o café de Jundiaí chegando a São Paulo e saindo daqui para Santos, a cidade enriqueceu, mas era extremamente feia. Por isso, o Ramos de Azevedo, que tinha estudado na Bélgica, foi chamado para construir uma cidade imperial com clara intenção e viés europeu. Começou a erguer palácios e prédios imponentes, rebuscados, como o Palácio de Justiça, na Praça Clóvis Beviláqua, o Mercado e o Theatro Municipal. A cidade colonial ia assim deixando espaço para a cidade imperial de marco europeu.

A terceira São Paulo é a modernista, que se sobrepõe a essas duas. O modernismo foi fantástico, o único problema, a meu ver, foi tentar apagar os períodos anteriores, porque a história da arquitetura paulistana faz parte de um processo. Mas foi um movimento que resultou em novas visões e em um tipo de arquitetura e variedade que poucas cidades têm. É invejável o nível de experimentação e a capacidade que os arquitetos modernistas tiveram de tomar as rédeas do mercado e produzir segundo o que eles julgavam bom tanto do ponto de vista da forma quanto da utilidade.

Acima, duas versões de uma mesma cidade: o Pátio do Colégio (à esquerda) é um dos poucos exemplares da São Paulo colonial, enquanto o Theatro Municipal (à direita) prevalece com um traço da São Paulo europeia. Crédito: Shutterstock | divulgação

O que mais te chama atenção em tudo isso?

O interessante da arquitetura de São Paulo é como tudo isso, uma vez que você começa a prestar atenção, é claro. É um livro aberto. As coisas estão conversando com você, seja como época, seja através de detalhes. Na rua do escritório, por exemplo, tem o Edifício Chavantes. O brasão do prédio é a imagem de uma colheita de café, ou seja, fica claro que a família que o construiu tinha uma produção cafeeira. Se você notar os detalhes, vai descobrir um monte de coisas, mesmo não sendo um especialista em arquitetura nem em história.

Como você vê a questão da mobilidade hoje nas grandes cidades, especialmente em São Paulo?

O carro como centro do mundo acabou. Grandes cidades que fizeram enormes mudanças em benefício do carro estão repensando, Nova York, Vancouver, Londres, Rio de Janeiro e até São Paulo. A internet também está criando uma mobilidade muito grande, as pessoas já conseguem trabalhar em casa, fazer reuniões via Skype. Se bem usada, a tecnologia diminui as distâncias. Se mal usada, isola as pessoas. De uma forma ou de outra, se uma cidade tão agressiva do ponto de vista dos negócios como Nova York está tirando o carro da jogada, não tem como outras cidades não chegarem a isso. Em São Paulo, o grande problema é a expansão extremamente lenta do metrô. Por isso, eu entendo o investimento no corredor de ônibus, porque é o jeito mais rápido de ganhar mobilidade. Mas não é suficiente, é preciso transformar o ônibus em metrô, ou seja, ter uma rede em que a pessoa não precise passar na catraca, pagar, comprar bilhete toda hora. Passando da primeira catraca ela deveria poder utilizar o sistema de ônibus exatamente como usa o metrô, simplesmente pulando de um para o outro.

As ciclovias se inserem como nesse quadro?

As ciclovias são positivas. Mesmo que a expansão estimule o aumento desse meio de transporte em apenas uma pequena faixa da população, já está valendo. Só não é válido quando elas não são bem planejadas. Em São Paulo, falta hoje uma malha mais interligada e mais bem pensada. Talvez pelo perfil dos profissionais – advogados, executivos etc. –, aqui no centro as ciclovias ainda são pouco utilizadas. Pode parecer absurdo hoje, mas se tivesse um carro na rua que você pudesse alugar ao sair daqui e deixar em outro lugar para outra pessoa usar, te serviria de uma forma muito mais inteligente e barata que um carro particular – sem contar que é mais democrático, pois não é necessário fazer o investimento inicial da compra. Esse uso compartilhado já está acontecendo na maioria das metrópoles mundo afora e no Recife também. No entanto, para funcionar, é preciso que o poder público apoie. Em muitas cidades da Europa, é permitido estacionar os carros compartilhados sem pagar zona azul. Os aplicativos estão trazendo essa discussão à tona. O fato de você pegar um Uber Pool e pagar praticamente o mesmo que um ônibus é uma revolução. Disso, vamos passar para os micro-ônibus, que terão um custo ainda menor. Temos que nos preparar para a terceira revolução, que será digital. Se a Uber venceu os táxis em Nova York, qualquer coisa pode acontecer em qualquer lugar do mundo.

As ciclovias podem representar um grande passo rumo a cidades menos congestionadas: “Em São Paulo, falta hoje uma malha mais bem interligada”, analisa Matteo. Crédito: Divulgação Secom | Shutterstock

O que é morar com qualidade para você?

Morar com qualidade é ter espaço. Esse marketing de que você precisa de duas vagas, academia, piscina, varanda-gourmet, não vale nada se você não tem espaço dentro do seu habitat natural, que é a sua residência. E espaço é altura, janela, luminosidade, conforto. E isso tem que estar perto do mundo, do seu trabalho, do seu lazer, daquilo que você gosta de fazer. Esse é o melhor dos mundos para você morar com qualidade. Não é porque estão construindo apartamentos de 15 m² que você tem que morar num apartamento de 15 m². Por trás disso, está um discurso mais amplo, que é a irresponsabilidade de algumas construtoras e incorporadoras de construir uma cidade nada amigável. Quando um arquiteto aceita projetar um apartamento de 15 m², ele está compactuando com uma cidade que está sugerindo, por meio da arquitetura, que a pessoa não vai ter um relacionamento duradouro, filhos, enfim uma série de coisas. Qualidade de vida é viver em espaços que sejam adequados à vida humana. Às vezes, tenho que ser um pouco duro com meus clientes e quebrar paradigmas, mas é porque acredito que eles serão mais felizes.

“Mesmo correndo o risco de ser banal, vou dizer que São Paulo é muito inspiradora. É uma cidade que me deu muito e que todos os dias me concede novos desafios”, diz o italiano naturalizado brasileiro. Crédito: divulgação Shutterstock

A resposta é previsível, mas gostaria que você elegesse uma cidade inspiradora.

Mesmo correndo o risco de ser banal, vou dizer que São Paulo é muito inspiradora. É uma cidade que me deu muito e que todos os dias me concede novos desafios – e sou movido a desafios. Não acredito que é possível ser feliz sem progresso, sem evolução. São Paulo é inspiradora também porque está deixando de ter esse viés só de negócios. Com certeza, já esmagou muitos sonhos por causa disso – tanto que é uma cidade construída por nordestinos, onde os mesmos são vítimas de preconceito. Ainda temos vários problemas com racismo e segregação, mas fazemos vista grossa. Mesmo com essa premissa e com todos os problemas e as contradições, continua sendo uma cidade generosa, onde as pessoas acreditam nas empreitadas alheias. Tive a prova disso com o livro Prédios de São Paulo, as pessoas acreditaram muito. Fazendo um paralelo com Roma, os italianos são muito mais estáticos e pessimistas, não sei se eles apoiariam com tanto entusiasmo um projeto como esse. Além disso, o dinheiro troca de mãos muito mais facilmente no Brasil do que na Europa, e isso é extremamente positivo, porque dá a todos a possibilidade de ter uma participação e uma vida melhor. Não estou falando de enriquecer, e sim de poder alugar um apartamento, trabalhar com aquilo que gosta, comer uma pizza, se divertir. Dá para ter uma vida relativamente tranquila sem se endividar.

O que ainda falta para o Brasil decolar?

Um pouco mais de pensamento coletivo. Por exemplo, todas as cidades do mundo já entenderam que não é o carro que vai resolver a parada da mobilidade. Lá fora, os ricos brigam para ter metrô. Richard Branson pega metro em Londres e Warren Buffett em Nova York. Aqui, os ricos não só não brigam pelo metrô, como tem gente que não quer metrô perto de casa. É uma questão cultural e educacional, o brasileiro tem o defeito de querer resolver só o problema dele e não da coletividade. Se o Morumbi está inseguro, ele compra um carro blindado e acabou o problema. Não se questiona porque o Morumbi está inseguro, nem como a situação chegou a esse ponto, com essa arquitetura de muros altos que deixa as ruas vazias, sem comércio, sem gente andando, totalmente vulneráveis pela falta de vida que as caracteriza. Está demorando muito para começarmos a pensar no bem do outro para termos o nosso bem agregado. O Brasil tem uma vantagem enorme por ter uma população tão grande. Um país com 200 milhões de pessoas com um alto nível de educação pode e deve ser “primeiro mundo”, se quiser. Se as cidades começarem a ser planejadas de uma maneira diferente e o acesso à informação for mais democrático, com as pessoas pensando que a escola pública que o filho delas vai estudar tem que ser a melhor do mundo e que nela vão estudar pessoas de todas as classes sociais – que serão cidadãos melhores por causa disso –, o país vai dar um salto enorme. Há algumas décadas, era preciso ter uma Ford para ser milionário. Hoje, a pessoa cria um iPhone, um Facebook, um Buscapé e fica milionária, empregando outras pessoas e gerando riquezas para o pais. Ou seja, dar uma boa educação a todos pode ajudar a construir um país melhor para todos, inclusive para quem se recusa a aceitar e acreditar nisso.