A reinvenção da cidade

“A primeira coisa a dizer é que nós somos construtores de cidades”. É com essa frase que o arquiteto e urbanista Fernando Viégas dá a partida para a entrevista inaugural da seção “Diálogos Huma”.

O arquiteto e urbanista Fernando Viégas, sócio do Una Arquitetos: “Estamos permanentemente fazendo cidades, portanto, esse ideal de uma cidade pronta não faz sentido”. Crédito: divulgação

Formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Fernando é sócio-fundador do premiado Una Arquitetos, escritório reconhecido pela multidisciplinaridade e por desenvolver projetos em diversas escalas, de projetos urbanos a equipamentos para transporte público, passando por espaços culturais, escolas e residências.

Em quase 20 anos de trajetória, o Una venceu importantes concursos públicos nacionais, como o Renova SP (2011), para a requalificação de assentamentos precários em São Paulo, e acumula prêmios como as menções honrosas na VIII Bienal de Arquitetura de São Paulo e na V Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Urbanismo, no Uruguai, entre vários outros.

Professor há muitos anos, ele é também associado e membro da diretoria da Escola de Cidade, faculdade de Arquitetura e Urbanismo criada no centro de São Paulo com a proposta de discutir diferentes formas de ocupação do espaço.

Mas – acima de tudo – Fernando Viégas é um apaixonado por cidades, especialmente por sua São Paulo natal. Nesta conversa, ele fala sobre possíveis caminhos para termos cidades mais organizadas, justas e gentis e os desafios de uma metrópole com 20 milhões de habitantes que cresceu rápida e desordenadamente. “São Paulo é uma cidade de 100 anos”, diz.

Na sua visão, é urgente repensar o modo de ocupação do nosso território e garantir o mínimo de urbanidade em lugares onde a concentração de pessoas é máxima e a infraestrutura, mínima – como as favelas. “Essa ideia de que a sustentabilidade é uma casa com um jardim e um cachorro na porta é totalmente insustentável, a sustentabilidade é uma cidade altamente densa.”

O desafio da mobilidade nas metrópoles e o exemplo encorajador de Medellín, na Colômbia, que apostou na educação aliada ao urbanismo como eixo fundamental para deixar para trás o título de uma das cidades mais violentas do mundo são outros temas desta entrevista. E, claro, a beleza desafiadora das cidades, sempre.

A partir da esquerda, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Cristiane Muniz e Fernando Viégas, sócios do Una Arquitetos: em quase 20 anos de trajetória, o escritório venceu importantes concursos públicos e acumula prêmios nacionais e internacionais. Crédito: divulgação

Em um mundo em que 50% da população vive em cidades e que deve ser cada vez mais urbano, quais são os caminhos para as metrópoles comportarem mais pessoas sem se tornarem inviáveis?

A primeira coisa a dizer é que nós somos construtores de cidades. O Milton Santos dizia que as cidades são a maior manifestação cultural do homem. É muito bonita essa ideia. Estamos permanentemente fazendo cidades, portanto, esse ideal de uma cidade pronta não faz sentido, ainda mais no caso da América.

A transformação está muito presente na nossa vida, inclusive na nossa estrutura enquanto sociedade. É interessante pensar que escolhemos viver em cidades, mas é muito grave quando, por falta de escolhas, inchamos as cidades e não oferecemos condições mínimas de uma ocupação mais organizada, justa e equilibrada do território.

Existe uma concentração de recursos nas grandes cidades que acaba matando as pequenas e, ao mesmo tempo, matando as grandes. As grandes cidades hoje representam todas as alegrias da vida contemporânea, dispõem de todos os recursos possíveis, mas também concentram os grandes problemas, as grandes mazelas. A literatura regionalista de meados do século passado fala da pobreza do sertão, do Nordeste, essa pobreza não existe mais, a maior pobreza que existe hoje está nas nossas fuças, é a Praça da Sé, o entorno da Sala São Paulo, é assustador, são os lugares onde mais se percebe a miséria de um país injusto, de renda concentrada.

Quando conseguirmos melhorar a distribuição de recursos pelo território, as cidades voltarão a ser mais saudáveis. A partir de certo ponto, é muito difícil, uma cidade com 20 milhões de habitantes, como São Paulo, tem problemas de mobilidade, de abastecimento, de poluição. É difícil reverter esse quadro muito rapidamente, mas temos de nos amparar em tudo o que estudamos. O Brasil viveu um pico demográfico no passado e agora está criando certa estabilidade, então, talvez seja o momento de pensar em longo prazo e tentar reorganizar territorialmente a cidade.

A ideia de reorganizar essas 20 milhões de pessoas dentro dessa mancha já ocupada me parece urgente, ou seja, temos que adensar. São Paulo é uma cidade muito pouco adensada e, por incrível que pareça, o adensamento ocorre nos bairros mais horizontais. As favelas são muito mais densas que Higienópolis, Itaim, Jardim Europa. Regiões centrais como Santa Cecília, Bela Vista e mesmo Higienópolis, têm, em média, 250 habitantes por hectare, Paraisópolis tem 600. A maioria das favelas tem 400 habitantes por hectare, não existe nenhum bairro formal em São Paulo que chegue a esse número. Acho que o novo plano diretor foi pensado nessa direção.


Em um lugar com o porte e as questões que permeiam o cotidiano de São Paulo, é viável uma reorganização dessas dimensões?

Essa revisão tem que ser feita. Precisamos equilibrar a ocupação, distribuir renda entre os municípios. O Estado tem um papel muito importante nisso. É economicamente inviável manter a cidade tão espalhada, fornecer infraestrutura para todo esse território e fazer as pessoas percorrerem distâncias enormes.

Os economistas poderiam – e deveriam – estudar mais o que representaria para as cidades essa economia em transporte, infraestrutura. Normalmente, as decisões são tomadas baseadas nos custos de execução, não se pensa nos custos de manutenção. Os economistas tirariam de letra esses cálculos e poderiam amparar soluções e decisões políticas e urbanísticas muito fortemente.

O problema é que as coisas sempre foram feitas visando certos lucros. Sem dúvida, a construção da cidade é uma forma de reprodução do capital, mas chegamos ao limite e temos que rever essa maneira de funcionar. O próprio Estado ajudou a perpetuar isso, com esses conjuntos habitacionais construídos superlonge na década de 1970, com a permissão para que se ocupassem as áreas de represas… Hoje, temos o metrô lá longe porque há pessoas vivendo nessas áreas e é justo, mas, ao mesmo tempo, temos que construir mecanismos de adensamento e contenção dessa mancha urbana.


Ao longo de sua trajetória profissional, qual cidade você mais viu se transformar? De que forma?

É bonito pensar que as cidades se transformaram muito desde que eu me formei [início da década de 1990] e que novas culturas urbanas surgiram. É muito interessante constatar como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, por exemplo, mudaram.

Brasília é um caso interessante. É muito evidente que a Brasília de verdade está acontecendo hoje, é uma cidade muito recente. Os desenhos do Lucio Costa para a superquadras tinham as árvores na escala dos edifícios, mas só hoje as árvores têm a altura que estava nos croquis.

A superquadra é uma experiência urbanística maravilhosa. O que não quer dizer que Brasília tenha conseguido se tornar maior que o Brasil, porque os problemas de Brasília são os problemas de todas as cidades brasileiras, ela só não conseguiu ser diferente, mas as experiências feitas no âmbito do Plano Piloto são fantásticas. Claro, o Eixo Monumental é um eixo de representação do poder, então ele tem aquela escala palaciana, de Washington, mas a experiência da superquadra como vivência, como densidade, é extraordinária.

Agora, pensando nas cidades que eu visitei, a experiência mais transformadora que vi foi em Medellín. Há 20 anos, Medellín era a cidade com o maior índice de homicídios por ano no mundo, a cidade do narcotráfico. O que aconteceu lá foi uma transformação social e política, mas que o urbanismo teve papel muito importante.

Isso é interessante dizer, porque a minha geração já sabia que a arquitetura e o urbanismo não iriam salvar o mundo, como outras gerações haviam imaginado de uma forma muito bonita. Os arquitetos modernos se colocaram questões gigantescas, de uma escala que é emocionante pensar. Tinha um pouco de ingenuidade, muito de voluntarismo, e eles conseguiram realizações extraordinárias. A nossa geração já sabia que não era bem por aí, que esses processos são muito mais complexos. Mas, ao mesmo tempo, é muito emocionante perceber como é importante a disciplina do urbanismo e da arquitetura para a transformação das pessoas, junto com a economia, a educação, a política.

Em Medellín, um prefeito que veio da universidade [Sergio Fajardo, que governou a cidade entre 2004 e 2008] e que tinha o apoio acadêmico no sentido de uma série de estudiosos que poderiam amparar o governo com pareceres técnicos, escolheu a educação como eixo fundamental de transformação, juntando urbanidade e educação. No dicionário, a palavra urbano aparece, inclusive, como sinônimo de civilizado, educado.

Implantou-se na cidade o conceito de um urbanismo social. Os investimentos passaram a ser feitos para criar situações de identificação das pessoas com o lugar em que viviam, e isso foi feito a partir de ações muito contundentes. A prefeitura escolhia lugares com os maiores índices de criminalidade e instalava ali um parque-biblioteca que era resultado de um concurso público, no qual o melhor projeto, o mais radical em termos de arquitetura, o mais de vanguarda, era construído em um local onde a presença do Estado antes não existia. E gastava-se muito nessa obra, porque uma obra pública que seja representativa de uma transformação tem que ser exemplar, como eram os edifícios republicanos.

O mais interessante em Medellín é o fato de o poder público ter usado esses edifícios conectados à infraestrutura, como os teleféricos construídos para ligar o alto dos morros, onde está a população mais pobre, ao sistema de metrô, para criar conexões de arquitetura. Essa transformação é muito recente, começou na virada do século e já deu resultados extraordinários.

Parque Biblioteca España, em Medellín, Colômbia: a cidade investiu pesado em educação e urbanismo social para deixar para trás o título de uma dos lugares mais violentos do mundo. Crédito: divulgação

Como a cultura se insere na discussão sobre o futuro das metrópoles?

A cidade é o nosso grande centro cultural, é onde as coisas realmente acontecem. Tem uma frase do Vilanova Artigas que é um pouco alegórica, mas que é legal: “a felicidade de um povo se mede pela beleza de suas cidades”. E podemos entender felicidade das mais diversas formas – e beleza, também.

O bonito nessa frase é pensar como a cidade influencia a nossa vida cotidiana. Tem uma coisa de você se reconhecer no lugar em que vive, de ter prazer em fazer os percursos, momentos de contemplação. Nesse sentido, a cidade é fundamental, é só comparar como vivem os paulistas e os cariocas, é completamente diferente.

Tivemos em São Paulo a transição de uma cidade relativamente pequena para uma metrópole, éramos uma vilazinha até a virada do século 19, quando a ferrovia Santos–Jundiaí ligou o interior paulista ao Porto de Santos. A produção cafeeira do interior começou a ser escoada, e São Paulo explodiu, virou um lugar de entreposto fantástico, onde se instalaram as indústrias que beneficiavam essa produção. A questão é que isso aconteceu em apenas um século. São Paulo é uma cidade de um século. Foi tudo muito rápido, urgente. De repente, passamos de uma vila para uma cidade e de uma cidade para uma metrópole.

Quando fica mais evidente que São Paulo se tornou, de fato, uma metrópole?

A cultura metropolitana fica muito evidente em São Paulo na década de 1950, quando a cidade virou a grande metrópole de um país que estava crescendo, tanto que os feitos de uma grande metrópole são até hoje inquestionáveis, o Parque do Ibirapuera, o Edifício Copan, o Conjunto Nacional, a transformação da Avenida Paulista, são grandes conquistas de uma metrópole. Tudo isso contribuiu para a construção de uma cultura metropolitana paulistana que é diferente das outras.

No campo da arquitetura, a Escola Paulista de Arquitetura tem três grandes mestres: Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Lina Bo Bardi. A Lina era italiana, o Paulo Mendes é capixaba e o Artigas era paranaense, quer dizer, isso é muito São Paulo, e a cidade representa essas características de uma forma muito eloquente.

Cada cidade conta a sua história e a de seu povo, talvez por isso as cidades sejam o melhor lugar para entendermos o que aconteceu. Até hoje, os grandes documentos da antiguidade são as ruínas das cidades dessa época. Esse vínculo de cultura de cidade, de metrópole, é muito evidente em São Paulo, nós estamos construindo um jeito de ser a partir da construção de nossas cidades – um jeito de ser violento, hipócrita, e, ao mesmo tempo, construindo formas de convivência, porque a cidade é conflito, como a história.

Centro Universitário Maria Antonia (SP): o restauro e a readequação da antiga sede da Faculdade de Filosofia e Letras da USP para receber o centro cultural rendeu ao escritório de Fernando Viégas menção honrosa na V Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo, em 2003. Crédito: divulgação

A globalização não provocou certa homogeneização das cidades, especialmente das grandes?

É possível identificar a homogeneização de determinadas características, mas as coisas que são profundas, estruturais, essas permanecem. E é importante percebê-las e ressaltá-las. Mesmo quando achamos que são coisas que acontecem em todos os lugares, não são.

O fenômeno do shopping center no Brasil, que dizem ser a importação de um modelo dos Estados Unidos, por exemplo. Os americanos deixaram de fazer shopping há muito tempo. E nós continuamos reproduzindo shopping centers porque aqui virou um símbolo de status. Por outro lado, é natural que o Rio de Janeiro tenha menos shopping centers, lá tem praias maravilhosas e pessoas muito mais acostumadas ao espaço público que os paulistanos. O espaço público de um lugar que foi capital do império é totalmente diferente de uma província que rapidamente cresceu e explodiu.

Ao mesmo tempo, é fascinante e alucinante uma cidade ter comportado 20 milhões de pessoas em 100 anos e funcionar de alguma maneira.

É interessante pensar que estamos vivendo no século 21 a revisão de tudo o que foi feito de maneira urgente para colocar 20 milhões de pessoas aqui. As pessoas vieram para esse acampamento gigante que é São Paulo sem um projeto que imaginasse essa ocupação de forma decente. Toda a infraestrutura instalada não foi planejada considerando que havia gente envolvida. Tudo foi feito na urgência.

O que temos que fazer agora é questionar se queremos uma cidade feita só para o automóvel, uma cidade tão espraiada, em que as pessoas tenham que percorrer distâncias gigantes, em que os rios estejam mortos, enterrados. Essa revisão de dizer que, em vez de transportar carga pelos trens, queremos transportar gente, é algo que estamos fazendo, a modernização das ferrovias é isso.

Uma das apostas para melhorar a mobilidade em São Paulo é o aumento da malha cicloviária. Aqui, inauguração do segundo trecho da ciclovia da Avenida Paulista. Crédito: divulgação

Falando em mobilidade, cidades como Paris e Nova York vêm promovendo uma revolução em nome da facilidade de deslocamento. Em São Paulo, há um movimento semelhante, evidenciado principalmente pela ampliação das ciclovias e das faixas de ônibus. Em um país que se modernizou baseado na cultura do automóvel, como encontrar novos caminhos para a mobilidade? E que caminhos são esses?

A mobilidade é uma questão nas grandes cidades e tem que ser enfrentada. No mundo todo, o carro está sendo questionado como alternativa. É uma encrenca essa coisa do carro, porque é uma máquina fantástica, com uma indústria muito forte. Mas não podemos mais imaginar que vamos medir os índices de crescimento econômico do Brasil com as nossas montadoras de automóveis.

Precisamos tomar decisões e já sabemos o que precisa ser feito. O transporte público de massa são o metrô e o trem. Para uma cidade com mais de milhão de habitantes funcionar, ela precisa ter uma rede de transporte de massa associada a um sistema, a outros transportes. Tecnicamente, deveríamos ter um plano que fosse do menor veículo possível ao metrô, de forma totalmente interligada.

Mesmo com tão pouco investimento no metrô, conseguimos formar uma rede interligada com as ferrovias. A mobilidade por trens hoje em São Paulo é muito maior que há 40 anos. E quando o transporte público melhora, podemos restringir o uso do carro. A bicicleta também será incrível para a transformação da cidade, mas como instrumento de cidadania. A vida inteira ouvimos que a bicicleta não daria certo numa cidade com a topografia de São Paulo – e deu.

Depois de todas as opções que fizemos pelo rodoviarismo e por obras da ditadura, é um avanço muito grande poder discutir se queremos ter carros passando em determinados lugares, se vamos fazer um parque no lugar do Minhocão, é um sinal de que não vamos mais sujeitar a cidade a obras ditatoriais, agressivas, não queremos mais.

Na sua visão, o que é uma cidade democrática?

É muito bonito perceber como esses processos são amplos. Temos apenas 30 anos de democracia e vivemos em um outro país. Claro que, hoje, agosto de 2015, estamos muito aflitos com a situação econômica e política, mas quando analisamos o que era o país há três décadas e o que ele se tornou, é impressionante. Não dá para comparar os dados de mortalidade infantil, educação, miséria, desemprego, a posição econômica do Brasil no mundo, o PIB, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Há problemas, claro, a democracia não é um sistema ideal, mas é o melhor que temos e precisamos defendê-la muito.

O curioso é que as cidades não refletem esse avanço. A vida das pessoas está muito melhor, só que fizemos uma opção por melhorar a vida delas não pelo que é a essência da melhoria de vida, como pela educação, que deveria ser o fio-condutor de uma sociedade nova. Não que não seja possível encontrar esse caminho, porque já melhoramos muito. Quando há menos gente passando fome, uma dívida externa gigante, aumento da expectativa de vida, é um avanço tremendo, mas se tivéssemos feito a opção pela educação, ela estaria muito evidenciada nas cidades.

Tenho trabalhado em projetos de urbanização de favelas que, no fundo, é dotá-las de uma infraestrutura mínima. São lugares muito precários, com risco iminente de incêndios, deslizamentos etc. Infelizmente, não conseguimos mais redesenhar a cidade e colocar todas essas pessoas morando em uma situação ideal, é preciso então garantir que o barraco não vá cair, acesso à água, luz, saneamento básico, e que vai haver uma rua próxima para que, caso uma senhora passe mal, a ambulância consiga chegar, ou seja, o mínimo de urbanidade.

As pessoas vivem numa situação sem o mínimo de qualidade urbana. Todos os dias, elas têm que subir uma rampa enlameada, pulando ratos, com esgoto a céu aberto e, quando entram em casa, tem computador, geladeira, TV a cabo, ou seja, nós incluímos essas pessoas pelo consumo, não como cidadãos com acesso à infraestrutura decente.

É triste pensar que tudo o que é privado no Brasil funciona melhor do que aquilo que é público. Isso é muito evidente porque as demandas das cidades brasileiras hoje são demandas do século 19, uma coisa inacreditável, saneamento, sistema viário, coleta do lixo. Ao mesmo tempo, as pessoas estão na internet vendo o que acontece do outro lado do mundo, mas com um gato, aquele fio que elas puxam do poste.

A ocupação do território dessa forma está dada, as favelas vão virar bairros, então, vamos tentar conduzir isso da melhor maneira possível, não dá para voltar atrás, a nossa cidade é essa. E é justamente nas favelas que temos a capacidade de fazer cidades, porque são lugares superdensos. Temos que transformar aquele morador que entrou acampando naquele lugar em um cidadão, essa é a grande transformação urbana.

Edifício Huma Klabin (SP): projeto assinado pelo Una para o empreendimento da Huma privilegia fachada dinâmica, aproveitamento máximo da luz natural e integração com a cidade por meio de um jardim aberto. Crédito: divulgação

Temos visto cada vez mais organizações e comitês formados por membros da sociedade civil para reivindicar melhorias nas cidades. Qual é o papel do cidadão nesse processo? E como deve ser a relação entre o público e o privado?

Esses processos são conjuntos, mas é muito importante que se redefina o papel do Estado. O neoliberalismo foi catastrófico nesse sentido, fez uma confusão gigante do que era o Estado mínimo, perdulário, e perdemos a mão. Hoje, não há quadros para ocupar as áreas técnicas do Estado.

Temos que brigar para que o Estado seja a possibilidade e a garantia de uma cidade para todos, inclusive para as minorias. É muito triste essa maioria avassaladora que esmaga tudo o que está em volta. O Estado deve equalizar essas questões e garantir a convivência das minorias. Só depois de redefinirmos o papel do Estado como mediador desses conflitos e termos ele ditando as regras do jogo é que vamos avançar para o passo seguinte, que é a sociedade civil organizada, jogando a partir dessas regras, que são comuns. Esse seria o grande salto.

Recentemente, fiz um passeio com minha família pela Chapada Diamantina. É um lugar deslumbrante, mas tudo o que é do Estado lá é de uma precariedade que não tem cabimento. Lençóis é uma cidade colonial que teve muito dinheiro da mineração, é tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional e, portanto, deveria ser tratada pelo Estado como uma joia, mas não tem tratamento de nada. No entanto, as pessoas que vivem lá são extraordinárias. São elas que preservam as matas, os parques, que melhoraram as escolas, as crianças falam inglês para receber os turistas. É uma sociedade que se organizou muito independentemente do Estado e faz aquilo funcionar. É muito emocionante quando você vê as coisas funcionando quase à revelia do Estado. E quando o Estado ampara, é a perfeição.

Um dos conceitos em discussão quando se pensa em arquitetura e urbanismo é a construção de cidades para pessoas. Como equacionar de forma eficiente essa questão?

O povoamento do nosso território foi muito predatório, é inacreditável. Formavam-se cidades para a exploração máxima dos recursos para enviar à metrópole. A ocupação aconteceu assim durante muitos e muitos séculos, por isso temos cidades de costas para os rios, jogando esgoto nas águas, a devastação da vegetação, o esgotamento dos recursos minerais, tudo isso está no DNA da nossa ocupação. É preciso agora fazer a revisão desse nosso passado colonial que teve como marca mais forte da nossa estrutura social a escravidão.

No caso específico de São Paulo, que é um sítio geográfico lindo, um mar de pequenos morros, com um milhão de nascentes, um lugar espetacular para uma civilização se desenvolver, a apropriação do território foi feita para acabar com tudo isso. É muito oportuno e necessário revermos essa ocupação e a nossa relação com a geografia. Isso pode ser feito mesmo em uma cidade como a nossa. Em cada pequeno projeto, deveríamos buscar entender o sítio geológico em que ele está, a topografia dos rios, das encostas, a vegetação, para que isso comece a se revelar como uma possibilidade de identificação das pessoas com o lugar onde elas estão.

A grande questão de São Paulo é a infraestrutura necessária para atender a essa quantidade de gente. Todos os anos, investimos uma quantidade absurda de dinheiro em infraestrutura, só que tudo é feito de forma setorial, é sempre um pensamento restrito a um problema específico – se tem uma questão de inundação, cava-se um buraco gigante no meio da cidade e chama-se de piscinão, só que é um esgoto a céu aberto, um criadouro de ratos, de sujeira, onde ninguém quer ficar envolta. Não se pensa na questão do escoamento da água, no que está em volta. Do mesmo modo, se é preciso levar energia a algum lugar, passa-se um linhão no meio da cidade. Se há um problema de transporte, cria-se uma linha que liga um lugar a outro sem a preocupação com o que está no caminho.

A grande questão no desenho das cidades do século 21 é planejá-las pensando que a cada intervenção dessas, com o mesmo dinheiro que se fez uma marca terrível no território, é possível construir lugares com a escala das pessoas. Para voltar à pergunta sobre as cidades para as pessoas, basta imaginar que cada obra de infraestrutura construída na cidade envolve gente, não é um problema de número, e sim de qualidade.

O reconhecimento do sítio geográfico original da cidade, aliado ao novo pensamento de desenho das infraestruturas como uma qualificação do lugar para as pessoas, é um tema do urbanismo e da arquitetura. Ainda estamos longe de alcançar essa maturidade, mas já temos algumas experiências muito ricas.

Nos últimos tempos, estabelecemos uma forma de construir a cidade que foi tirando a importância do projeto e correndo com a execução. Essas grandes construtoras ganharam um poder decisório sobre as políticas urbanas que transbordou. Estamos pagando caro pela falta de projeto, embora ainda tenha quem faça o discurso truculento de que projeto demora. Sabemos que assim não dá certo – ou reconhecemos a importância do professor e começamos a remunerá-lo bem, o valor do planejador e de um projeto de arquitetura exemplar para que as coisas aconteçam, ou vamos continuar alimentando esse círculo vicioso em que as coisas têm que ser feitas às pressas porque só assim o país irá crescer.

Reurbanização do Parque Dom Pedro II (SP): apresentado em 2010, o projeto idealizado pelo Una prevê a requalificação urbana do parque que faz a ligação do centro com a zona leste. A proposta inclui a construção de uma nova unidade do Sesc e outra do Senac ao lado do Mercado Municipal. Crédito: divulgação

Qual deve ser o papel da arquitetura nesse processo?

O projeto de arquitetura, de urbanismo, é resultado de uma atividade coletiva, de discussões de grupos multidisciplinares, muito mais do que a assinatura de um arquiteto.

Prefiro que nossa arquitetura seja reconhecida por ser feita de projetos diferentes, mas sempre com preocupações que nortearam a solução final, a ser lembrada porque os projetos são rosa, roxo, curvos ou vermelhos. Quando existe um grupo de entendidos de um assunto discutindo – sociólogos, engenheiros, historiadores, políticos –, todos sabem fazer diagnósticos incríveis dos seus saberes, mas uma síntese precisa ser feita. Muitas vezes, essas sínteses são feitas não para se concluir um processo, mas como uma possibilidade de crítica para que a conversa avance. Nesse momento, o desenho, o plano urbanístico do arquiteto é fundamental.

As grandes emoções que eu tive na minha vida como arquiteto e urbanista foram em grupos como esse, quando a conversa já não andava, apresentar um desenho, um plano, um projeto que serviu de base para uma nova rodada de discussão, para a coisa andar. Quando você apresenta um desenho assim, as pessoas se emocionam, elas não acreditam que alguém interpretou aquelas conversas, por isso é tão importante marcar a posição do arquiteto não como um ser que sabe tudo e impõe sua ideia, mas como um documento da arquitetura e do urbanismo como um lugar possível de diálogo na sociedade.

Como ter construções mais sustentáveis, do ponto de vista mais amplo, em harmonia com o meio ambiente e com o entorno, sem abrir mão da qualidade e do conforto?

A sustentabilidade como forma de encontrar uma equação de coisas que possamos realizar e manter, sustentar, ainda é pouco discutida. Fala-se muito sobre quanto custaram os estádios da Copa, o metrô, as Olimpíadas no Rio, mas não sabemos quanto custa manter todas essas estruturas.

Existe esse fetiche de que a arquitetura vai resolver o problema com um painel solar e outras soluções como essas, mas a questão da sustentabilidade que me interessa está na escala da infraestrutura.

Por mais que cada um tenha seu filtro de barro em casa, numa cidade com 20 milhões de pessoas, precisaríamos de 20 lagos muito maiores do que São Paulo para botar água na boca de todo mundo. A água potável nasce de uma ideia ambiental, ou seja, precisamos preservar as nascentes dos rios que estão a 200 quilômetros de São Paulo. É aí que está a escala da sustentabilidade.

Quando olhamos o mapa de São Paulo e percebemos a quantidade de represas que existem e que não estão dando conta ou analisamos as inundações que estamos fazendo na Amazônia para conseguir energia, fica evidente o que é a escala da sustentabilidade.

É claro que pequenas intervenções e uma conscientização que está mais ligada à educação são importantes, quanto mais educado é um povo, mais ele vai economizar água, energia, produzir menos lixo, mas a grande questão de sustentabilidade está no âmbito da infraestrutura.

A questão do lixo deve ser encarada não como um problema, mas como uma indústria que tem uma matéria-prima que pode dar muito dinheiro. É preciso pensar grande essas questões. Para que o lixo não seja um problema e sim uma solução, temos de investir em grandes indústrias de coleta, de reciclagem, de transformação, de queima para o que tem de ser queimado, para que isso vire um ciclo. Acho ótimo que as pessoas façam a garrafa PET virar outra coisa no seu quintal, mas, antes, não precisaria ter havido a garrafa PET.

Claro que não podemos abrir mão daquilo que cada indivíduo e a sociedade civil podem fazer juntos, mas o Estado é que tem que dar as regras do jogo e dizer o que é sustentabilidade. A sustentabilidade da cidade passa pela questão da alta densidade, contrariando a ideia de que sustentabilidade é uma casinha com jardim e um cachorro na porta, isso é absolutamente insustentável, a sustentabilidade é uma cidade muito densa.

Qual é o seu ideal de cidade?

Eu acho as cidades lindas, algumas estão enfermas, inchadas, mas as cidades são lugares incríveis. Todo mundo quer morar em cidade porque é demais. As cidades mais sensacionais são aquelas que oferecem a possibilidade de você ser anônimo e introspectivo em meio a um mundaréu de gente.

Voltando à frase do Artigas, de que a felicidade de um povo se mede pela beleza de suas cidades, eu acho que se a gente percebesse que o povo está um pouquinho mais feliz, seríamos mais felizes. Eu não consigo acreditar que alguém esteja muito feliz com a cidade que temos, com tanta gente vivendo na rua, com um bairro batizado de Cracolândia, enfim com essas coisas perversas.

É impossível que seja da índole humana achar que uma pessoa só é feliz em comparação ao outro, tipo eu sou feliz porque estou muito melhor do que aquele que está na rua, isso é muito triste. Se acreditássemos que estamos construindo espaços públicos onde realmente as minorias e as diferenças podem se manifestar e que estamos todos juntos nesse lugar, tentando fazer uma cidade para todos, estaríamos muito melhores.

Eu nasci em São Paulo, trabalho aqui e grande parte da minha reflexão como profissional tem a ver com a cidade, então eu vou brigar por isso aqui. Essa briga é uma atividade política, a cidade é o lugar onde exercemos a política.

Crédito: Por Tatiana Engelbrecht