Pela troca
A cidade é o lugar que o homem moderno escolheu como o centro de sua vida. Em um cenário de metrópoles cada vez mais densas, populosas e altamente privatizadas, o bom urbanismo só pode ser aquele que cria espaços de intercâmbio entre as pessoas. Esta é a tese que vem sendo defendida por um grande número de urbanistas, arquitetos, sociólogos e antropólogos em várias partes do mundo.
“A cidade é onde as pessoas vivem, interagem, é onde tudo acontece”, diz a arquiteta e urbanista Beatriz Vanzolini, diretora da organização não governamental Bela Rua, que desenvolve projetos em parceria com a Conexão Cultural que buscam transformar espaços públicos em lugares que inspiram pessoas. “É nos espaços públicos que as pessoas se comunicam, se encontram e se relacionam de fato, por isso eles são fundamentais.”
No artigo “Os 10 Melhores Espaços Públicos de Iniciativa Privada”, publicado recentemente no site Caos Planejado, o arquiteto e urbanista Anthony Ling afirma que, embora não haja um significado preciso para o que se convencionou chamar de espaços públicos, ele difere das definições de propriedade pública e privada comumente usadas no urbanismo. “Em uma cidade, um espaço público é um espaço aberto, que permite livre acesso e permanência irrestrita daqueles que gostariam de usar aquele espaço para qualquer finalidade. Neste sentido, até mesmo cafés podem ser considerados espaços públicos (ou semi-públicos), dado que, na maioria dos casos, funcionam desta forma.”
Jardim da Fundação Calouste Golbenkian, em Lisboa, Portugal: exemplo de espaço de uso público construído e mantido pela iniciativa privada. Crédito: reprodução
Na visão do geógrafo e urbanista espanhol Jordi Borja, autor de obras como “Espacio Público” (Espaço Público) e “La Ciudad Conquistada” (A Cidade Conquistada), os espaços públicos são o grande lugar de representação e expressão coletiva da sociedade e uma resposta dos cidadãos ao processo de apropriação privada das cidades. “Em Barcelona, foi quase uma revolução cultural quando, entre o final da década de 1960 e começo dos anos 1970, os coletivos organizados nos bairros reclamavam, entre outras coisas, uma praça”, destacou Jordi no Fórum Internacional Espaço Público e Cidade, realizado em 2005, na Colômbia. “Propunha-se que não bastava que houvesse um ônibus ou um centro de assistência médica, era preciso também existir uma praça, um centro cívico de encontro, um equipamento cultural.” Ou seja, nas cidades cada vez mais modernas e populosas, o acesso à infraestrutura já não é suficiente, é preciso haver também a preocupação com o lugar de encontro, de convivência, de troca.
Praça Ricard Viñes, em Lérida, na Catalunha: revitalizada em 2010 com projeto da arquiteta italiana Benedetta Tagliabue para ser um lugar de encontro na cidade espanhola. Crédito: Elena Valles
Público x privado
Mesmo sendo quase automática a associação entre espaços públicos e o Estado, esta não é – e não deve ser – a única forma de garantir a construção desses equipamentos nas cidades. Prova disso é que se multiplicam exemplos de espaços abertos às comunidades criados e mantidos pela iniciativa privada com os mais diferentes objetivos: criar um lugar onde as pessoas possam consumir seus produtos, valorizar sua marca e seu empreendimento, ou então estimular o fortalecimento das comunidades, entre outros.
As possibilidades de construção desses lugares são ainda mais reveladoras se pensarmos que um espaço público pode resultar de um novo olhar para aquilo que o antropólogo francês Marc Augé chama de “não-lugares”, ou seja, espaços transitórios que não têm significado suficiente para serem um lugar. Partindo dessa lógica, um olhar mais cuidadoso para a área em torno de um edifício, os arredores de um hospital ou de uma universidade, as estações de metrô e até os aeroportos podem ganhar um novo valor, tornando-se espaços públicos úteis e vibrantes.
O projeto Under the Elevated, da ONG Design for Public Spaces, busca dar vida e utilidade a “não-lugares” de Nova York, como os espaços ociosos debaixo de pontes e viadutos. Crédito: divulgação
Variáveis
Embora grande parte das cidades seja carente de espaços públicos de qualidade, construir um espaço público bem-sucedido é um processo complexo e que envolve muitas variáveis. Como ressalta Jordi Borja em suas pesquisas, não se pode, por exemplo, propor um projeto de requalificação de um bairro marginal, com altos índices de insegurança, informalidade e indigência, apenas porque ali se teve a ideia de construir um espaço mais democrático.
Para que a estratégia realmente funcione, ela deve estar amparada em vários pré-requisitos que, juntos, vão contribuir para que a iniciativa dê resultado. “O urbanismo não resolve tudo, e menos resolverá um espaço público”, alerta o urbanista espanhol, acrescentando que, neste caso, mesmo que exista um espaço convidativo, as pessoas vão sempre preferir um lugar que ofereça mais segurança.
Sala São Paulo, na capital paulista: o investimento de milhões na revitalização da antiga Estação Júlio Prestes não foi suficiente para transformar o local, vizinho à Cracolândia, em um espaço público bem-sucedido. Crédito: reprodução
O mesmo raciocínio é defendido pelo urbanista Ricardo Corrêa, fundador da empresa de mobilidade TC Urbes. Em entrevista ao Blog Huma, ele criticou o modelo de planejamento que resulta em espaços públicos em que o entorno não é levado em consideração. Como exemplo, ele citou a Sala São Paulo, na capital paulista. A criação de um espaço suntuoso na antiga Estação Júlio Prestes para abrigar àquela que é hoje considerada a melhor sala de concertos da América Latina não foi suficiente para revitalizar a região, vizinha à Cracolândia, e fazer dela um lugar de encontro.
“Não acredito em acupuntura urbana, ou seja, quando se gasta muito dinheiro em um determinado lugar supondo que aquilo vai melhorar o entorno. Não aconteceu isso na Sala São Paulo. Foram investidos milhões na reforma, e a sala virou uma ilha, aonde as pessoas chegam de carro e vão embora correndo, com medo. Não tem um barzinho, não existe vida noturna, nada em volta”, afirmou Ricardo.
É consenso entre os profissionais e pesquisadores do tema que o planejamento de um espaço público deve levar em consideração não apenas a visão do setor público, mas também a opinião dos atores sociais inseridos naquela realidade, ou seja, moradores, comerciantes, frequentadores do bairro e até estudos acadêmicos. Outro ponto fundamental para a continuidade e o sucesso do projeto é a avaliação constante e participativa desses espaços, pois só assim é possível elencar eventuais problemas e buscar soluções para as falhas. Por fim, é indispensável que as atividades econômicas da cidade contribuam para gerar um espaço público cidadão. “Um bom espaço público é a melhor garantia da competitividade econômica de uma cidade”, garante Jordi.
O projeto de revitalização urbana do Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, deve sair do papel este ano e prevê o aumento da acessibilidade, da segurança e estímulo ao comércio. Crédito: reprodução
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Publicado em: 16/03/2016
Categoria: O morador é cidadão